POLÍTICA INTERNACIONAL.
Por: Vinicius Mansur*
ESTAVA EM UM seminário intitulado
“Estado, sociedade e crise do capital”, realizado em La Paz , Bolívia. Na programação do evento, que indicava que ele também ocorreria nas cidades de Cochabamba, Santa Cruz e Oruro, estavam renomados intelectuais, de diferentes partes do mundo, alinhados ao pensamento crítico, como a mexicana Ana Esther Ceceña, o inglês Bob Jessop, a chinesa Ngai-Ling Sum, o boliviano Álvaro García Linera.
Entre os temas a serem abordados, o folheto do seminário destacava “Economia política da regulação póscrise”, “Volta do Estado? Crise econômica e democracia”, “Crise financeira e o ascenso de Estados periféricos: BRIC e o caso da China”, “Geopolítica da dominação na América Latina”, “Economia Política Cultural”, “Anticapitalismo e descolonização na Bolívia”.
Em tese, um evento assim poderia acontecer em qualquer parte do mundo. Porém, em muitos poucos países, essa iniciativa seria organizada pelo Ministério de Participação e Desenvolvimento, Ministério de Economia e Finanças Públicas e Vice-presidência da República, como estampava o material de divulgação.
Em pouquíssimos lugares, um seminário com tal proposta traria atividades de formação exclusivas para determinados setores do funcionalismo público, como aconteceu aqui.
Em raros países, ele teria como palco principal o Banco Central, em um bonito auditório cuja capacidade de mil pessoas foi preenchida em praticamente todos os dias.
Dimensão histórica
Por estar imerso na realidade boliviana, observando suas contradições, atento às polêmicas como correspondente do Brasil de Fato e absorvido pelo cotidiano do país, vejo a dimensão histórica do processo pelo qual passa a Bolívia se diluir no viver do dia a dia, tão marcado pelas dificuldades do governo em romper e superar a herança colonial, e também capitalista, que impregna as instituições de Estado – sejam elas de coerção física, legislativas, executivas, do judiciário ou prestadora de serviços –, os partidos políticos – manifestando-se até mesmo no interior do MAS-IPSP –, a economia... enfim, que impregna a cultura.
Entretanto, não há ceticismo que resista a um debate sobre a crise do capital dentro do Banco Central. A força simbólica desse ato evidencia com vigor – e com sinceridade – que o país está buscando outro rumo.
Diante das enormes dificuldades, apresentadas em todo o mundo e, em especial, na América Latina, de sair das formas de organização social desiguais consagradas pelo capitalismo globalizado, caracterizando uma espécie de déficit político – que alguns poderão identificar como programático, outros como ideológico e terceiros como a estratégia viável para acumulação de forças –, a Bolívia lança mão de vários simbolismos que buscam evidenciar que está em transição.
Em outras palavras, na Bolívia, a ação política transformadora no campo simbólico parece ser trabalhada com algum método pelos dirigentes do “proceso de cambio”.
Identifi cação étnica
Digamos que tal ação política só existe com tamanha força – mas não só por isso – por causa da identificação étnica – e também de classe – do povo com o líder desse processo, o aimara de Oruro, o cocaleiro de Cochabamba e presidente do Estado Plurinacional da Bolívia, Evo Morales Ayma. A mudança simbólica na relação indígena-poder sem dúvida é capitalizada e trabalhada sistematicamente pela política, e poderíamos dizer que a nova Constituição – aprovada em referendo popular, que instaura o Estado Plurinacional e que afirma em seu preâmbulo: “deixamos no passado o Estado colonial, republicano e neoliberal” – é um fruto dessa capitalização, é um dos reflexos mais vistosos dessa apropriação política.
Outro movimento político claramente perceptível está no esforço em tornar o presidente de origem indígena a liderança internacional de defesa da natureza, da Madre Tierra, da Pachamama. Ainda que o programa de governo 2010-2015 do MAS-IPSP esteja recheado de projetos industrializantes e desenvolvimentistas.
Nos espaços da Organização das Nações Unidas (ONU), Morales foi designado, por entidades indígenas, como o “líder espiritual e político dos povos indígenas de Abya Yala [continente americano], defensor do Viver Bem e dos Direitos da Mãe Terra”, sendo encarregado de levar ao órgão “Os 10 mandamentos para salvar a Mãe Terra do capitalismo”.
Simbologia
Durante o último encontro da ONU em Copenhague, Morales convocou a Conferência Mundial dos Povos sobre Mudanças Climáticas – com sede na cidade boliviana de Cochabamba –, propôs a realização de um referendo mundial para definir as políticas que enfrentarão o problema e, fazendo alusão a Fidel Castro, cobrou os países industrializados a pagar a dívida ecológica, ao invés de cobrar a dívida externa dos países em desenvolvimento. Outra movimentação que cresce este ano, mas iniciada em 2007, postula a indicação de Evo Morales ao prêmio Nobel da Paz.
Poderíamos citar exemplos mais pontuais dessa ação política, através do Estado, no campo simbólico boliviano, como a incorporação da wiphala – bandeira indígena com 49 quadrados coloridos nas cores do arco-íris – como símbolo oficial da “pluri-nação”, sendo inclusive incorporada pelas Forças Armadas. Aliás, a incorporação oficial dos dizeres “Pátria ou Morte, venceremos” pelos militares, bradada pela primeira vez em um desfile militar feito em março deste ano, é um outro exemplo.
Em meio a dificuldades tão palpáveis para se gestar um sistema-mundo alternativo ao capitalismo, tais mudanças no campo simbólico denunciam o momento transformador por qual passa o país. Essas evidências dizem muito sobre a profundidade do processo, apesar de não serem todos os elementos necessários para caracterizá-lo. Alimentam expectativas por sua tradução em profundas mudanças na vida material. O que elas materializam até agora é a certeza de que um processo contestador está em curso e que, nesse sentido, há debate vivo, orgânico, por parte daqueles que acreditam em construir seu próprio caminho.
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*Vinicius Mansur é correspondente do Brasil de Fato em La Paz (Bolívia)
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