sexta-feira, 21 de maio de 2010

- CNBB e o Pêndulo para a Direita

Por: Professor Cardozo



1. Breve periodização: a CNBB engajada

1952. Este foi o ano em que os 20 arcebispos do episcopado e o Núncio Apostólico aprovaram o regulamento que criava a Conferência Nacional dos Bispos do Brasil. O Cardeal Carlos Carmelo, de São Paulo, era aclamado seu primeiro presidente, tendo ao lado, como secretário-geral, Dom Helder Câmara. A CNBB nasceu das mãos de Dom Helder. Desde o início, a CNBB vivenciou a marca do acordo interno. Em 1965, Dom Helder vai para Recife, se tornando arcebispo. As conversas de corredor davam conta que sua transferência tinha como objetivo central diminuir a capacidade de influenciar os bispos do país com suas idéias progressistas, como as de Maritain e Mounier. A partir de 1961, três padres da Cáritas Brasileira elaboram uma campanha para arrecadar fundos para ações assistenciais. Logo, recebeu o nome de Campanha da Fraternidade. A partir de 1964, as campanhas passaram a receber o tom da CNBB, que passou a orientá-la tendo como referência o documento “Campanha da Fraternidade: pontos fundamentais apreciados pelo Episcopado em Roma”. Não por coincidência, as suas 13 regionais ganham maior autonomia, procurando adaptar as ações à realidade local.

A Campanha da Fraternidade teve um significado especial durante os anos de chumbo, assumida como atividade evangelizadora, como ajuda entre cristão e fraternidade para transformação da sociedade. A relação direta entre ação da igreja e participação social na transformação social era um sinal claro dos ventos do Concílio Vaticano II. Uma rápida lembrança dos temas da Campanha revela seu compromisso político. A primeira fase, que compreende os anos de 1964 a 1972, procura tratar de mudanças internas da igreja católica brasileira. Tanto que o tema de 1964 era justamente “Renovação da Igreja”. Nos anos seguintes, os temas foram se aprofundando: renovação da paróquia, a igualdade entre todos, co-responsabilidade, vocação. A partir de 1973, as Campanhas da Fraternidade aprofundam o engajamento político-social. Era o período mais duro do regime militar. Os temas das Campanhas não poderiam ser mais explícitos: crítica ao egoísmo, repartir o pão, ação comunitária, justiça para todos, mundo do trabalho e justiça, um mundo mais humano, migrações (como uma das mazelas do modelo desenvolvimentista que o país adotava). Finalmente, na etapa da redemocratização do país, pós-1985, os temas adotados se referem a situações concretas da vida das populações mais carentes do país, como se esboçassem uma agenda nacional: pão para quem tem fome, acesso à terra, direitos das crianças e adolescentes, igualdade racial, direitos da mulher, dignidade no mundo do trabalho, juventude, moradia, excluídos, justiça e paz.

Entre 1975 e 1980, emergem as Comunidades Eclesiais de Base e o trabalho das pastorais sociais como espaços de reflexão crítica sobre a realidade social e os rumos políticos do país. Neste período são contabilizadas mais de 60 mil CEBs espalhadas pelo país. Em 1975 é criada a Comissão Pastoral da Terra (CPT), órgão vinculado à Comissão Episcopal para o Serviço da Caridade, da Justiça e da Paz. A CPT nasce durante o Encontro de Pastoral da Amazônia, convocado pela CNBB e realizado em Goiânia, até hoje local da sede nacional desta pastoral. Desde o início, a marca desta pastoral foi o acolhimento e organização dos povos excluídos do campo, das regiões de fronteira agrícola, ribeirinhos afetados por projetos governamentais que levavam à sua desapropriação, luta de assalariados rurais sem reconhecimento legal (caso dos canavieiros e seringueiros). O trabalho das pastorais sociais diretamente vinculadas ao mundo do trabalho (caso da CPT e da Pastoral Operária) e, mais adiante, da institucionalização de direitos de segmentos socialmente desassistidos (caso da Pastoral do Menor), foi gerando uma gama imensa de organizações políticas locais, muitas delas orientadas pelo signo do enfrentamento e resistência. Em 1980, não por outro motivo, o texto produzido na 18ª Assembléia da CNBB, realizada em Itaici (SP) trabalhava os vários significados da terra para homens e mulheres. Destaca que homens e mulheres do campo estabelecem com a terra uma relação diferente da lógica dos grandes mercados. Um documento que contrapunha a lógica do mercado à lógica da vida, uma importante tentativa de teorização que criava subsídios e fundamentação para muitos agentes pastorais que ingressavam em listas de jurados de morte formatadas por organizações para-militares.

Dez anos depois, em 1996, o Grito dos Excluídos passa a ser incluído no Projeto da CNBB, fruto da avaliação feita a partir de sua primeira edição no ano anterior.

Contudo, neste período, as pastorais sociais e várias organismos de base criados pela CNBB ou sob sua guarda, sofriam uma profunda crise, de identidade, política e de financiamento.

2. A crise dos organismos pastorais

Comecemos pela crise de identidade. A partir da emergência de organizações nacionais próprias das populações ou segmentos sociais acolhidos, apoiados, assessorados e organizados pelas pastorais sociais, a função e missão dessas estruturas confessionais entraram em colapso. Em outras palavras, as pastorais sociais que tinham adotado um nítido programa de organização das populações atendidas objetivando sua autonomia política e resistência, viu emergir, fruto de seu trabalho organizativo e formativo, imensas organizações sociais. Das oposições sindicais nasceu a CUT. Da organização da luta pela terra nasceu o MST. Do trabalho desenvolvido com agricultores familiares nasceu a federação de agricultores familiares e o Movimento de Pequenos Agricultores. Do trabalho com populações ribeirinhas nasceu o Movimento de Atingidos por Barragens. Todas estruturas autônomas, poderosas, com forte estrutura interna, programas de formação política e técnica específicos e próprios, representação autônoma. Muitas de suas fontes de financiamento passaram a competir com as fontes de grande parte das pastorais sociais e suas estruturas regionais.

A questão que figurou, a partir de então, em todos encontros pastorais passou a ser: “qual nosso papel?”. Não tão explícito, outro problema incomodava vários agentes pastorais: como sobreviveriam com a escassez progressiva de financiamentos?

Estas duas questões articulavam-se permanentemente. Até os dias atuais, não foram respondidas à contento, o que promove uma rotatividade de apoiadores e agentes ano após ano. Em cada encontro anual, novos rostos substituem outros tantos que estiveram presentes no ano anterior. Debates sobre o futuro, se ONGs ou articulações nacionais, se formadores de lideranças ou formuladores de políticas públicas, se sucedem, sem resolução nítida. Algumas pastorais sociais minguaram. Outras, mais pragmáticas e conservadoras, como a Pastoral da Criança, floresceram sob os auspícios de verbas públicas.

Simultaneamente, a ofensiva conservadora do Vaticano, a partir da gestão de João Paulo II, criou forte instabilidade interna na CNBB. Um jogo de forças, no interior da igreja católica brasileira, com troca de bispos e nomeação de arcebispos de linhagem mais conservadora, fechamento de seminários. Dom Helder foi símbolo desta mudança. Sua aposentadoria foi apontada por seus seguidores como dolorosa. O novo arcebispo de Recife rompeu radicalmente com o trabalha pastoral até então desenvolvido naquela localidade.

Enfim, a mudança ideológica no Vaticano resultou em uma crise política no interior da CNBB que se expressou abertamente nesta 48ª Assembléia Nacional dos bispos brasileiros, realizada em meados de maio de 2010. No princípio, em meados dos anos 1990, a ofensiva poderia ser ilustrada como asfixia. Novos bispos cortaram apoio financeiro, logístico e político ao trabalho pastoral de base. Houve reação, com a organização, a partir de 1991, da Semana Social Brasileira, articulação nacional das lideranças e agentes pastorais da “CNBB Progressista”, que teve, até o momento, quatro versões e que procurou elaborar uma agenda e visão sobre o país que orientasse a ação pastoral da igreja católica do país. Na última versão da SSB, realizada em meados desta primeira década do século 21, já se percebia o cerco político e esvaziamento desta articulação política.

Estudos sobre cooperação de países ricos para programas e intervenção social no hemisfério sul (ajudas ao desenvolvimento) revelaram corte em 50% desses recursos provenientes do Japão, Finlândia e Suécia no início dos anos 1990. Outros países, muito atuantes junto às ONGs e organismos de promoção social do Brasil, como Itália, Holanda, Alemanha e França, seguiram o mesmo caminho. Das fontes financiadoras que permaneceram, emergiu uma série de condicionantes desconhecidos até então dos agentes sociais e pastorais brasileiros, como eficiência e eficácia, indicadores de resultados, planejamento estratégico e sistemas de gerenciamento por objetivos. Em 2009, um novo corte de 50% de apoio financeiro para tais ações havia sido verificado pelo Instituto Fonte a partir de amostra junto a 41 organizações estrangeiras com atuação no Brasil (sendo que 15% dessas organizações projetam retirada completa de seus investimentos no Brasil a partir de 2015). Se nos anos 1990 a motivação para o corte era a necessidade de investimentos no leste europeu (após a queda do muro de Berlim) e deslocamento gradativo de investimentos para a África, nesta década a motivação passou a ser a crise financeira global. Um encontro recente organizado pelo Grupo de Institutos, Fundações e Empresas (GIFE) adotou como título de um de seus painéis o sugestivo vaticínio: “Bye Bye Brazil: as ONGs diante da saída dos recursos internacionais”.

Trata-se, portanto, de um percurso de rareamento de financiamento externo que teve início nos anos 1990 e atinge brutalmente a logística e sustentabilidade de muitas das organizações pastorais, mais progressistas, do Brasil.

3. A CNBB capturada pela direita

A igreja católica brasileira sempre teve em sua cúpula setores mais conservadores. Dos anos de chumbo da política brasileira até meados dos anos 1990, tivemos um interregno desta lógica política que oscilava entre a caridade e o apoio explícito às forças políticas de direita. Há inúmeros registros a respeito, a começar pelo incentivo que a cúpula católica conferiu aos Círculos Operários, organização de enfrentamento do avanço comunista sobre organizações trabalhistas. Também são registrados os esforços de criação de organizações de ajuda mútua e caridade no meio rural nordestino, como enfrentamento às Ligas Camponesas. Logo após o golpe militar de 1964, a cúpula da igreja católica negociou a substituição de dirigentes sindicais rurais por lideranças católicas por ela indicadas como interventores. Os exemplos são muitos.

A partir da segunda gestão do governo Lula, alguns impactos sociais e políticas do governo federal alteraram significativamente o equilíbrio interno das forças políticas da CNBB. Uma mudança, no jargão de esquerda, da correlação de forças.

Dois motivos merecem destaque.

O primeiro foi a forte ascensão social de muitos pobres que ingressaram, sob a batuta da política salarial e de transferência de renda, no mercado consumidor. As populações marginalizadas, que engrossaram durante anos os movimentos de resistência e confronto com a institucionalidade vigente no país, diminuíram. As ocupações de terra e acampamentos em beira de estrada despencaram nos últimos cinco anos, como ilustração deste fenômeno. O emergente, como tantas pesquisas revelam, é pragmático, sedento por consumo de qualidade e fechado em sua família. Não lhe atrai envolver-se com ações públicas, de rua. Muito menos ações de enfrentamento e risco pessoal.

O segundo motivo foi o abandono, por parte do governo, da agenda proposta por agentes pastorais – até então, um dos pilares da lógica petista – e de todo mecanismo de participação direta na gestão pública. A adoção do PAC foi a última declaração de afastamento concreto da gestão Lula em relação à lógica da Teologia de Libertação, em sua expressão brasileira. O confronto iniciado pelas greves de fome de Frei Cappio, contra a Transposição do Rio São Francisco, foi apenas uma dentre tantas demonstrações de isolamento político da lógica comunitarista, de resistência social e tomada de decisões a partir de mecanismos de democracia direta (anti-institucionais por natureza) que definiam o projeto político que envolvia “as populações excluídas” a partir das ações pastorais progressistas.

A Era Lula dividiu as pastorais sociais e a CNBB de Dom Helder Câmara. Várias pastorais ancoradas na Teologia da Libertação resolveram romper com a proximidade com o governo federal. Já haviam sido afastadas do governo federal tempos antes, com a saída de Frei Betto e Ivo Poletto do Programa Fome Zero. Alguns agentes pastorais se tornaram céticos em relação a qualquer possibilidade positiva oriunda do sistema partidário e instituições políticas do país. Outros, alinharam-se com a perspectiva ambientalista e ensaiaram aproximações com o bloco articulado ao redor da ex-ministra Marina Silva. Outros, ainda, voltaram às origens e se aproximaram timidamente da liderança de Plínio de Arruda Sampaio, desde sempre uma referência progressista para boa parte da CNBB, hoje candidato do PSOL à Presidência da República.

Com a divisão da ala progressista da CNBB, o Pêndulo de Foucault fez mais um movimento. A ala considerada centro da CNBB pode se afastar ainda mais dos compromissos históricos e de convivência com o setor progressista, incrustado na direção das pastorais sociais da entidade. E a ala mais conservadora emergiu. Não porque tenha mais força no país. Mas porque o outro extremo se dividiu em várias alas. Porque a concepção que fundou a CNBB não tem mais um projeto claro para o país.

É daí que se compreende que a Campanha da Fraternidade, mais uma vez ecumênica (2000 e 2005 tiveram, também, sua versão ecumênica) será crítica ao governo Lula. No texto de referência da campanha lê-se: “Apesar de os gastos com juros e amortizações da dívida pública consumirem mais de 30% dos recursos orçamentários do país, essas dívidas não param de crescer. A dívida interna alcançou a gigantesca cifra de R$ 1,6 trilhão em dezembro de 2008, tendo apresentado crescimento acelerado nos últimos anos”. Uma das tabelas do texto de referência mostra a elevação da dívida nos governos de FHC (1995-2002) e de Lula. O documento cita o PAC ao atacar a má distribuição de renda: “O crescimento do PIB, expresso em médias nacionais, não é sinônimo de boa distribuição dos recursos entre os diversos grupos sociais. Os pobres continuam lesados nos seus direitos. O PAC é o exemplo mais recente no Brasil”. Como esta versão da Campanha ainda é comandada por forças progressistas, a campanha defende a realização de um plebiscito sobre a limitação do tamanho das propriedades rurais do país. Lula une a CNBB, pela oposição, e abriu uma fissura no interior da organização. Como em política não há vazio de poder, o setor mais conservador decidiu dar seu passo à frente.

A 48ª Assembléia da CNBB indicou uma mudança de rumos importante. Trata-se de guerra de posição no seu interior. O pronunciamento oficial do arcebispo de Porto Alegre, Dom Dadeus Grings, na assembléia, foi uma demonstração de ousadia e força. O ultradireitista líder católico afirmou, sem qualquer pudor e com todo mecanismo de superego desligado: “Quando a sexualidade é banalizada, é claro que isso vai atingir todos os casos. O homossexualismo é um caso. Antigamente não se falava em homossexual. E era discriminado. Quando começa a (dizer) que eles têm direitos, direitos de se manifestar publicamente, daqui a pouco vão achar os direitos dos pedófilos.” Em outras palavras, alinhou pedófilos aos homossexuais. Estava se explicitando não apenas uma linha de defesa da igreja católica, mergulhada em inúmeras denúncias de pedofilia envolvendo padres e bispos de todo mundo. O discurso era, também, ofensivo, ocupando o espaço do ideário católico brasileiro, até então definido pela “opção preferencial pelos pobres”. A fala de Dom Dadeus é um nítido libelo homofóbico, reacionário, que ofende os princípios dos direitos humanos. Em 2007, a assembléia da CNBB já prenunciava tal avanço conservador ao definir que a conferência deveria exercer maior influência junto aos políticos na recusa de propostas que ferissem os dogmas católicos. A defesa já era institucional, não mais pela libertação social dos marginalizados.

Finalmente, chegamos ao embate aberto, tendo o Programa Nacional de Direitos Humanos (PNDH) como pretexto. A grande imprensa noticiou: “Um grupo menos simpático ao governo do PT defende a negação total do programa. Outro defende o diálogo: é contrário a alguns pontos, mas defende que parte do texto seja preservada. A divisão reflete o racha político na CNBB.” O racha existe, mas a divisão não se dá efetivamente em relação ao apoio ao governo Lula. Pelo contrário. O que está em jogo é o Pêndulo de Foucault.

Vários bispos conservadores decidiram se impor para diminuir a politização da CNBB e esvaziar os grupos com atuação de esquerda. O Presidente da Cáritas Brasileira — progressista —, Dom Luiz Demétrio Valentini, favorável a uma censura apenas aos pontos polêmicos (aborto e casamento homossexual), afirmou que não havia consenso sobre o PNDH e decidiu explicitar a tensão nos debates. Em suas palavras:

“Não há consenso sobre o programa. Há tensão nos debates. Alguns bispos estão motivados por certo fundamentalismo incompatível com os tempos atuais e querem mandar o plano e o Lula para o inferno. Não se pode dizer amém simplesmente ao plano. Mas não se pode negar tudo”.

O próximo passo, muitos avaliam, será a desmontagem da assessoria técnica da CNBB, considerada pelos conservadores como identificada com a esquerda e próxima ao governo Lula. Quem deverá assumir esta tarefa, dentre outros, é o Arcebispo da Paraíba, Dom Aldo Pagoto. Segundo suas palavras:

"Há uma inspiração inegável nos modelos bolivarianos da Venezuela, Bolívia e Equador, cujos governos pregam a democracia participativa de grupos de pressão, inibem o Legislativo e o Judiciário e negam valores transcendentes". Por seu turno, Dom Amaury Castanho, ex-bispo diocesano de Jundiaí sugeriu que o afastamento gradativo de fiéis da Igreja Católica seguiu a tendência predominante de politização da igreja brasileira nos últimos trinta anos. Dom Amaury confronta, inclusive, com a idéia de “opção preferencial pelos pobres”, afirmando que esta opção teria sido, de fato, de exclusão dos fiéis mais abastados. E provoca: nem mesmo os pobres compreenderam tal opção, já que onde a Teologia da Libertação e CEBs atuou – a periferia das cidades – foi justamente onde houve maior evasão de fiéis para outras religiões.

Haveria algo mais nítido sobre o clima de confronto aberto entre bispos brasileiros?

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