quarta-feira, 9 de junho de 2010

- Por quê política ?

Francisco de Oliveira


Sociólogo

Por quê política ?

 Boa tarde. Neste fim de tarde, começo da noite fria de São Paulo, muito

obrigado ao Ibase, aos meus velhos amigos do Ibase e das outras

organizações, o Attac e a Fundação Rosa Luxemburgo pelo convite para

estar aqui hoje.Devo citar especialmente o Ivo Lesbaupin, que me fez o

convite, pessoalmente. E a ele fico devendo muitas coisas, inclusive um

texto. A pergunta é: por quê reinventar a política? É porque, numa definição

muito polêmica, a política é a reivindicação da parte dos que não têm parte.

Esta é uma definição de Jacques Rancière, um filósofo francês em seu

pequeno e magnífico O Desentendimento. Isto é, se faz política quando,

para dizer da forma mais simples, quando se reivindica o que não é nosso

pelo sistema de direitos dominantes, e se cria um campo de contestação.É

o que o MST faz, por exemplo. Rancière chama as manobras cotidianas da

política de “política policial” para distinguir entre as rupturas e a criação de

um campo de disputas e o movimento comum da atividade política. E,

como estamos e ainda estaremos por muito tempo, até onde a vista

alcança, numa sociedade em que os que não têm parte são a maior

parte,então é preciso fazer política. Por quê? Porque o sistema capitalista é

fortemente concentrador de riquezas, de recursos e também concentrou a

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política. E a política apareceu, num sistema de propriedade privada, como

a invenção capaz de corrigir, senão totalmente, pelo menos parcialmente,

em algumas questões muito importantes, a assimetria de poderes que o

sistema capitalista cria no seu movimento. O sistema fortemente privatista,

concentrador em todos os sentidos, do qual não se pode esperar

automaticamente da sua dinâmica, nenhuma distribuição ou redistribuição

da riqueza e do poder. Mesmo os casos mais bem sucedidos em que o

sistema capitalista chegou a níveis de, eu não diria de igualdade, mas a

níveis de desigualdade toleráveis, é uma ilusão pensar que isso se deu

automaticamente. Na história da Europa Ocidental foram as instituições

que se chamou do Estado do Bem-Estar que conseguiram produzir os

níveis menores de desigualdade. Mesmo na tradição americana, que é tida

como a mais liberal, é uma ilusão pensar que foram os mecanismos de

mercado. Foi aí, precisamente na Grande Depressão que surgiram com

maior força elementos também do Estado do Bem-Estar, que a retórica

liberal norte-americana oculta como tendo sido de iniciativa estatal.

 Seria longo alinhar as razões pelas quais foi pela política e não pelos

automatismos de mercado que se conseguiu reduzir os níveis de

desigualdade nas experiências mais exitosas da democracia

representativa. Mesmo na sua periferia e, sobretudo, falando da periferia

latino-americana, embora nunca se tenha chegado a nenhum Estado do

Bem-Estar - os nossos se parecem muito mais com o Estado do Mal-Estar

– percebe-se pela narração da experiência mexicana - na palavra aqui do

companheiro Victor Quintana - como a pretensa instalação de

automatismos de mercado elevou, de novo, os níveis de desigualdade

mexicana a patamares que os mexicanos não conheciam há mais de 50

anos. Mesmo que o Estado criado pela revolução mexicana tenha sido

eivado de um forte componente autoritário e carcomido por uma corrupção

talvez sem paralelo. Mas este estado que tem no governo o senhor Fox –

rapôsa em inglês, como sabemos -é pior do que a experiência mexicana

anterior, autoritária e corrupta. O caso brasileiro, que conhecemos mais,

confirma a experiência mexicana, assim como a argentina e a chilena.

 Então, o ruim da história é que a dinâmica capitalista está tornando a

política irrelevante para as classes dominantes e inacessível para as

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classes dominadas. Irrelevante do ponto de vista de que as grandes

questões, as grandes decisões, passam por fora do sistema representativo

e não estão ao alcance das instituições que a democracia criou para

veicular esta reivindicação da parte dos que não têm parte. Qual é o caso

mais dramático entre nós que explicita essa irrelevância da política para as

classes dominantes na América Latina? Sem dúvida, O caso da

Venezuela, onde a burguesia venezuelana com seus aliados, com o apoio

norte-americano e da Espanha, fortemente insuflado pela mídia, operou

simplesmente a tomada do poder político pelo presidente da

FEDECÁMARAS, a superfederação das federações das

empresas.Reduziram o poder político ao poder econômico, anulando a

separação entre os campos dos dois poderes, que o próprio liberalismo

elevou ao estatuto de princípio fundamental. Isto mostrou a irrelevância da

política como método de ação dentro da sociedade capitalista.

 Isto mostra a chamada crise da democracia representativa, a principal

forma da política na longa experiência que vem se

universalizando.Passamos então de uma situação em que a esquerda, e

eu me incluo nela, fazia a qualificação da democracia como “burguesa” e

não lhe reconhecíamos o caráter, contraditório, democrático da

democracia. Mas dessa situação de apelidar “democracia burguesa”

transitou-se a uma outra, oposta e igualmente perigosa. Aquilo que na

senda do discurso político dos anos 20 e 30 do século XX, chamou-se

“cretinismo parlamentar”, remember Carl Schmitt e a “conversa sem fim”

dos parlamentos. Do zero ao infinito. Então louva-se que hoje praticamente

não há sistemas totalitários ou mesmo autoritários. E também declinou o

número de tiranos, tiranetes, ditadores e chefetes. Aí chegamos ao

paraíso. E isso ocorre precisamente quando a política torna-se irrelevante.

O paradoxo da ampla democratização no mundo é que as instituições

democráticas e representativas não funcionam mais. Não funcionam para

fazer a correção das assimetrias de poder econômico e político dentro do

sistema.

 A arena política, dos partidos e das instituições representativas, foi

abandonada pelo poder econômico e o poder político foi transformado em

um simulacro. Em tradições liberais mais afoitas como a norte-americana,

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que detém a mais longeva experiência democrática mundial, os gringos

com seu espírito pragmático se deram conta logo cedo que os mecanismos

da democracia representativa eram insuficientes para processar os novos

interesses criados pelo capitalismo mais dinâmico do planeta. Então

inventaram os lobbies que são uma forma, também institucionalizada,

reconhecida, de pressionar por fora do sistema representativo. Em outras

tradições paradoxalmente menos liberais e mais cínicas, como a da própria

Europa e as da periferia capitalista, os lobbies sequer são

institucionalizados; em certas práticas do capitalismo asiático, não há nem

necessidade de lobbies: as classes dominantes são donas do poder

político, como na experiência do Partido Democrático no Japão, por

exemplo.No Brasil, quem passeia pelos corredores do Congresso Nacional

logo reconhece os lobistas:todos têm cara de lobistas; Lombroso estava

certo. E estão não oficialmente, porque essa espécie de cinismo larvar das

nossas instituições não reconhece o que os americanos já reconheceram

faz mais de um século.

 O que nos diz tudo isso? Diz que as formas da democracia representativa,

o principal lugar onde se exerce a política, são claramente suficientes para

processar os novos conflitos sociais, econômicos e de interesses, no

capitalismo globalizado. O que não quer dizer, absolutamente, que

devemos colocá-las de lado, mas quer dizer sim que é preciso acrescentar

às instituições da democracia representativa novas formas de fazer

política.Por quê? Porque ela tornou-se irrelevante para os que dominam e

inacessível para os que precisam fazer reivindicações, isto é, ação política.

Tomou-se conhecimento agora de uma pesquisa da Unesco, realizada em

vários paises da América Latina em que se perguntava aos cidadãos pelo

valor da democracia. A resposta foi surpreendentemente negativa. A maior

parte dos latino-americanos respondeu que talvez fosse preferível um

regime autoritário, desde que satisfizesse a certas demandas sociais. Aí é

que mora o perigo. Porque não está provado que regimes autoritários

satisfaçam melhor às necessidades da população que reivindica do que

regimes democráticos. A tragédia é que tampouco os regimes

democráticos estão satisfazendo.

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 Mas não nos apressemos a ver componentes atávicos de autoritarismos

nos nossos povos. Se se fizesse a pergunta a cidadãos dos países

desenvolvidos, iríamos encontrar algo muito parecido. Fazendo a pergunta

diretamente, provavelmente tem-se uma resposta positiva. Inverta-se a

pergunta: qual é a relevância da política para a sua vida cotidiana? Então

se obterá a resposta, nos países desenvolvidos, de que ela é irrelevante.

Desde os membros das classes dominantes, passando pelas classes

médias, pelos liberais e pelo operariado e trabalhadores de serviços,

responderão que a política é irrelevante mesmo.Onde está a resposta a

essa enquête que não foi feita? Nas eleições norte-americanas. Só 25%

dos eleitores escolhem o Presidente da República Norte Americana. Só

25%. Por quê? Como a eleição é de comparecimento voluntário, o grau de

abstenção nas eleições americanas é fantasticamente alto e o presidente é

eleito pela metade dos eleitores que comparecem. A França mostrou

também de outra maneira que a política pode se tornar irrelevante. Na

última eleição presidencial a esquerda considerou que no feriado eleitoral,

ela devia ir para a praia, mesmo que as praias francesas não sejam lá

grande coisa.E no primeiro turno deu Chirac e Le Pen. A opção francesa

ficou entre o pescoço e a guilhotina. A opção do mal menor, ou do menos

pior. Correram socialistas, toda a esquerda e os liberais – lugarzinho difícil

no espectro político francês - às urnas no segundo turno para votar em

Chirac, para evitar que a guilhotina se apoderasse da presidência da

república francesa, para decepar Marianne. O primeiro turno foi um outro

modo de ver que para o cidadão comum está fazendo pouca diferença a

política. Nos países desenvolvidos, isto é trágico.

 Mas nas periferias isso é devastador. Porque você renuncia ao único

mecanismo de fato criado dentro da civilização política do capitalismo para

corrigir as desigualdades e transformar carências em direitos. Como é que

estão as coisas entre nós, América Latina e Brasil? Como é que está a

correlação de forças, na nossa langue de bois? Ela é extremamente

desfavorável à democracia, à política como “reinvidicação da parte dos que

não têm parte”.As grandes questões não passam pelo sistema

representativo, estão fora. Há, em primeiro lugar uma espécie de

desterritorialização da política. Ela saiu fora do território nacional e fora do

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“alcance de método” das classes dominadas.Elas estão, agora, no âmbito

de instituições supranacionais. Uma das quais, aliás, a mais fraca delas

que é a UNCTAD, que não tem nenhum poder decisório, está se reunindo

nas nossas costas, no Palácio das Convenções do Anhembi, às margens

desse desagrádavel Tietê. A UNCTAD é fraca porque não decide nada.

Mas os que decidem, como o Fundo Monetário Internacional, a

Organização Mundial do Comércio, o Banco Mundial, a Agência

Internacional de Energia Atômica, na verdade decidem as políticas dos

países mais fracos do sistema capitalista. Decidem nossas políticas.

 Eu estou esquematizando muito, evidentemente, e dramatizando, um

recurso necessário no discurso político. Mas a verdade não se afasta muito

disso. Há limites impostos, como por exemplo o superávit primário nas

contas fiscais do Estado. Se se acordou com o Fundo Monetário um certo

nível de superávit primário e não se o cumpre, a retaliação vem

imediatamente. A retaliação vem pelo mercado.Não estar cumprindo a

meta significa que não pode pagar a dívida. Vai dar um calote. E aí o risco

Brasil dispara lá pra cima. Quando o risco-Brasil vai para cima, a

credibilidade do Brasil vai para baixo. Há uma queda do valor dos títulos da

dívida externa brasileira, e os investidores deles se desvencilham, o que

faz entrar em ação a espiral descendente. A guilhotina funciona

imediatamente. As instituições financeiras vão elevar a taxa de juros para

emprestar ao Brasil, externamente, e internamente as mesmas instituições

elevam também a taxa de juros para empréstimos da dívida pública interna.

Então esse é o primeiro ponto em que a política deixa de estar ao alcance

dos cidadãos de cada um de nossos países.E o interessante é que o risco-

Brasil é um procedimento de avaliação realizado por empresas privadas

que trabalham nos mercados financeiro e de capitais! Elas podem declarar

a falência dos países! Então é como se o nosso voto não valesse nada.

Como o George Soros disse descaradamente, o voto dos brasileiros não

pode decidir o que o Brasil deve escolher. Quem tem esse direito, disse

ele, são os investidores.Votem em fulano ou sicrano, tanto faz, disse ele.

Essa é uma questão importante que não é vista como crise da política: é

vista como crise dos estados devedores.Quando ela deve ser entendida de

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outra forma, para alcançarmos o entendimento de qual é o desgaste que a

forma representativa e as formas da política estão sofrendo entre nós.

 Para não falar das grandes empresas multinacionais que atuam nas

nossas economias.Este é um tema importante porque se pensa sempre,

sobretudo nós que trabalhamos nesses organismos que a gente chama

com a boca cheia de “sociedade civil”.A descoberta da “sociedade civil” foi

uma enorme novidade, preenhe de consequências, para uma tradição

estadolatra como a brasileira e, em geral, a latino-americana.E fora dessa

sociedade civil estão, na tradição de Gramsci, o estado e o mercado. Só

que a empresa privada por si mesma, é um ator político de primeira

grandeza. E, sobretudo devido ao seu tamanho.

 Pensa-se que a empresa só atua no mercado. Na verdade ela atua no

mercado e atua na sociedade. Ela cria regras de comportamento que

anulam a capacidade da política de corrigir as assimetrias de forças no

capitalismo contemporâneo. O exemplo mais banal dá-se no nosso

cotidiano. Hoje, se tivermos a sorte, vai-se pra casa, e como está frio,

alugamos um filme e tomamos uma sôpa quente.Ligou o aparelho, a

legenda lhe traz a primeira advertência: “O senhor não pode usar este filme

senão para fins de exibição privada. Se for usado para qualquer outra

exibição, estará incorrendo nas penas determinadas pela lei”.Você diz isso

é banal, o senhor está exagerando. Mas aí eu pulo e vou para o tema do

companheiro Victor, e de muitas organizações que tratam disso

cotidianamente. É o tema também do MST e do Greenpeace, os

transgênicos. A escolha de camponeses, trabalhadores rurais, pequenos

proprietários, está bloqueada pela patente da Monsanto. Ali há um veto

claro. O sistema chegou a tal ponto que o capitalismo já anulou a

propriedade do valor de uso da mercadoria. Isto é, a utilidade que você dà

à mercadoria. Pois este valor de uso, uma espécie de pedra fundamental

do sistema,está anulado nos transgênicos. Você só pode fazer com a

semente transgênica aquilo que a Monsanto inscreveu no seu código

genético. Você não pode usá-la, por exemplo, como semente. Os

transgênicos avançam do mundo vegetal para o mundo animal. Esse tipo

de coisas torna as empresas um ator político por excelência. Não somos só

nós que estamos na sociedade civil. Elas estão mais do que nós e não

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temos muitos meios de anular essa intervenção da empresa na sociedade

civil e na política porque isto corre por dentro daquilo que se consome.

 Então, são restrições desse tipo que terminam naquilo que minha amiga

Vera da Silva Telles, socióloga da USP e colaboradora do Polis e de várias

de nossas ONGs, chama com muita graça de “brincar de fazer casinha”.

Fazemos nossas organizações, tentamos mobilizar a sociedade para as

lutas, vocalizamos o que ainda não tem nome no léxico político e...? Nada.

Porque o que fazemos afeta muito pouco o poder das empresas, das

instituições supranacionais e das instituições estatais. É claro que contra

isso vem se reagindo. As grandes manifestações, como o companheiro

Victor Quintana conseguiu mostrar, têm uma certa capacidade de deter

medidas predadoras. Mas é pouco em relação ao poder que as empresas

têm no campo da política. Nós pensamos, geralmente, que o campo da

política é nosso e que o campo das empresas é o campo da economia.

Não é verdade. O campo da política é também um campo dominado pelas

empresas. Esse processo na periferia foi agravado, evidentemente, pelo

processo de globalização. É um conjunto de fenômenos que vem erodindo

o campo da política. O campo onde os cidadãos decidem sobre sua

república, sobre sua democracia, sobre seu estado.

 Nesse campo, o movimento simultâneo de globalização e reestruturação

produtiva, na periferia tem um efeito devastador. Que se mede, em

primeiro lugar, pelo porte das empresas frente aos poderes nacionais. O

porte de qualquer das grandes empresas mundiais frente aos poderes

nacionais é simplesmente desproporcional. Em segundo lugar vem uma

reestruturação produtiva que mudou a relação entre as classes sociais. Ao

mudar essa relação entre as classes sociais, ela escanteia boa parte das

organizações que a antiga institucionalidade criou.Por exemplo, o poder

dos sindicatos, que foi na experiência ocidental, um lugar onde essa

assimetria de poder entre patrão e empregado podia ser corrigida, podia

ser atenuada. Com a reestruturação produtiva os sindicatos perdem

espaço, em todo o mundo. Há mais. Há um processo de subjetivação do

individualismo predatório no interior das massas operárias. Vê-se pelas

pesquisas que se fazem na universidade. O processo de trabalho chamado

de células, é um processo de subjetivação do individualismo predatório.O

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que era competição entre trabalhadores chega, através desses processos,

a níveis quase inacreditáveis. E tudo se faz em ambientes que são cleans,

limpos. Este hotel perde de longe para qualquer fábrica, por exemplo, de

fármacos. É uma espécie de opressão limpa. Operários e sobretudo

operárias são jogados na competição mais desapiedada. E as instituições

de classes criadas para corrigir essa assimetria são inteiramente

escanteadas. Isso está passando para a subjetividade de trabalhadoras e

trabalhadores.Produzindo o que Grammsci chamava hegemonia. Está

construindo uma nova forma de pensar, de ver o seu trabalho, de ver a

relação com o outro. Este é o dado, provavelmente, mais poderoso desse

processo.

 Então a questão exatamente é a de criar novas formas de política. De

reinventar a política. Essa reinvenção está se dando. Essa reunião é uma

prova dela. As ONGs são instituições criadas por fora do sistema político

tradicional, que começaram a vocalizar e processar aquilo que o sistema

representativo não sabia nem podia fazer, incluindo-se aí os partidos

políticos. Mas vejam a capacidade do sistema de cooptar. Porque as

organizações das classes dominantes começaram a copiar as ONGs e se

apresentam como iniciativa cidadã. Na verdade, trata-se de uma forma de

apropriação de um novo campo da política que foi inventado fora dela.

 Todos os grandes temas da novidade política foram trazidas por essas

organizações porque o sistema antigo não tinha capacidade de processálas.

Os partidos, na velha tradição esquerdista na qual eu me criei, tinham

um “departamento feminino”, encarregado de preparar as festas,

ornamentá-las, cuidar da creche, etc. E era tudo. Movimento feminista

mesmo é coisa que estava subordinada à classe. Até que Elizabeth Lôbo,

que infelizmente já nos deixou, veio nos ensinar que a classe tem sexo. E o

tema do ambiente veio também como uma demanda que o sistema não

sabia como processar.Estão aparecendo, portanto, para além disso, novos

temas, novos conflitos, que esse sistema não tem capacidade de

processar.

 É, portanto urgente a criação de novas formas de fazer política. O Plínio de

Arruda Sampaio propõe os clubes democráticos. É como se nós

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tivéssemos que reinventar os clubes jacobinos. E vamos ter que reinventálos.

Para criar um novo espaço de conflito, um novo espaço capaz de dizer

aquilo que o sistema representativo já não tem capacidade de dizer porque

ele foi completamente absorvido. Ele é irrelevante. O Fábio Comparato

que é uma espécie de santo, tem uma proposta de uma confederação

geral de ONGs, associações civis e políticas,associações populares, para

formar um contra-poder.Nós não queremos que ele morra, quanto mais ele

durar melhor,mas quando ele morrer, será santo certamente, junto com

Paul Singer.

 Não temos que ter piedade de fazer a crítica à democracia representativa.

Se não a fizermos, a direita fará. E a direita faz uma crítica que é

simplesmente afastá-la, como mostra a história da direita brasileira,

vivandeira de quartéis. A expressão foi do marechal Castelo Branco, que

os cariocas chamaram de “O Corcunda do Nosso Drama”.Temos que fazer

a crítica para fortalecê-la e para criar novos campos que sejam capazes de

processar os conflitos que ela não sabe processar ou que ela, pela sua

cooptação, já é incapaz de processar.

 Se olharmos o sistema representativo brasileiro hoje, os partidos

respondem exatamente a quê? É fácil dizermos e devemos continuar a

dizer, porque água mole em pedra dura tanto bate até que fura, o PFL é

um partido de direita no Brasil. Mas ele é mesmo um partido de direita? Ele

representa os grandes interesses de multinacionais, das grandes empresas

e tal? Certamente não. Ele pode ser um partido que serve à direita, mas

ele não tem mais a capacidade de expressar esses interesses. Eles são

muito maiores do que o PFL pode processar. Nós podemos dizer que o PT

é o partido das grandes massas? Já foi, mas provavelmente hoje não é. E

não é não por questões de caráter ou falta de caráter. Não é porque a

política faz esse processo: no momento em que o partido de oposição

passa ao poder, ele seqüestra a sociedade civil. Ele arrasta parte da

sociedade civil para dentro do governo. E ao arrastar, ao fazer essa

operação, ele anula a capacidade de reivindicar. É só por isso que é

preciso contestar sempre, criar novos campos de contestação e inventar

novas organizações. Senão perde-se as duas batalhas. A da política e a

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da capacidade de reivindicar e de corrigir as assimetrias de poder

existentes numa sociedade como essa.

 Vê-se esse drama precisamente no governo Lula, que se empossa com o

respaldo de 62% da votação brasileira.Algo que só ocorreu na história

republicana nos últimos 50 anos com Jânio Quadros. Mas o que é que

ocorreu? A eleição de Lula mostrou, mais do que nada, que o sistema

político estava ultrapassado, pois não era capaz de processar esses novos

interesses, incluindo o desgaste que o neo-liberalismo estava sofrendo no

Brasil. Aliás, é bom deixar de otimismo. Nós não estamos exatamente

numa era pós-neoliberal. Ainda não.

 A eleição mostrava que o sistema partidário havia sido ultrapassado.

Então, o governo se estabelece e remonta o sistema. Como se isso

significasse alguma coisa. Bota quase todos os partidos dentro do governo.

Escolhe um Conselho de Desenvolvimento Econômico e Social, e pensa

“representar” a sociedade brasileira no Conselho e no Ministério. Três

Ministérios para os banqueiros, já é muito. Quatro para os industriais, dois

para o agro-negócio, cinco sindicalistas, três intelectuais, que todo pudim

se enfeita com cereja. Bota a cerejinha em cima do pudim e a gente o

come com mais gosto. E quatro ou cinco ongueiros, que é a sociedade

civil. E pensa: agora a gente governa. Não, não governa, porque esse

sistema não tem mais eficácia. Ele foi ultrapassado. A sua eleição

ultrapassou esse sistema. Só você não reconheceu isso. E ao remontá-lo

pensa que governa e não governa. Qual foi a decisão importante que

passou no Conselho de Desenvolvimento Econômico e Social? Nenhuma.

Nenhuma porque não pode passar. E os partidos então no governo mudam

qualquer representante, nos Ministérios e tudo continua igual.

 É preciso, portanto, criar novos lugares de fazer política, novas formas de

fazer política. Inventar mesmo, porque a política é permanentemente uma

invenção para podermos voltar à capacidade de reivindicar, no mínimo, e

desafiarmos a desigualdade enorme de forças que existe no sistema. Na

minha juventude, e isso já vai longe, eu subi muitas vezes no caixão de gás

para blasfemar contra a política. Mas nunca foi tão importante fazê-la

quanto agora. E voltamos ao Chico Buarque dos bons e velhos tempos,

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para dizer a quem estiver de plantão no governo: “Você que inventou a

maldade/ faça-me o favor de desinventá-la”.

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