Francisco de Oliveira
Sociólogo
Por quê política ?
Boa tarde. Neste fim de tarde, começo da noite fria de São Paulo, muito
obrigado ao Ibase, aos meus velhos amigos do Ibase e das outras
organizações, o Attac e a Fundação Rosa Luxemburgo pelo convite para
estar aqui hoje.Devo citar especialmente o Ivo Lesbaupin, que me fez o
convite, pessoalmente. E a ele fico devendo muitas coisas, inclusive um
texto. A pergunta é: por quê reinventar a política? É porque, numa definição
muito polêmica, a política é a reivindicação da parte dos que não têm parte.
Esta é uma definição de Jacques Rancière, um filósofo francês em seu
pequeno e magnífico O Desentendimento. Isto é, se faz política quando,
para dizer da forma mais simples, quando se reivindica o que não é nosso
pelo sistema de direitos dominantes, e se cria um campo de contestação.É
o que o MST faz, por exemplo. Rancière chama as manobras cotidianas da
política de “política policial” para distinguir entre as rupturas e a criação de
um campo de disputas e o movimento comum da atividade política. E,
como estamos e ainda estaremos por muito tempo, até onde a vista
alcança, numa sociedade em que os que não têm parte são a maior
parte,então é preciso fazer política. Por quê? Porque o sistema capitalista é
fortemente concentrador de riquezas, de recursos e também concentrou a
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política. E a política apareceu, num sistema de propriedade privada, como
a invenção capaz de corrigir, senão totalmente, pelo menos parcialmente,
em algumas questões muito importantes, a assimetria de poderes que o
sistema capitalista cria no seu movimento. O sistema fortemente privatista,
concentrador em todos os sentidos, do qual não se pode esperar
automaticamente da sua dinâmica, nenhuma distribuição ou redistribuição
da riqueza e do poder. Mesmo os casos mais bem sucedidos em que o
sistema capitalista chegou a níveis de, eu não diria de igualdade, mas a
níveis de desigualdade toleráveis, é uma ilusão pensar que isso se deu
automaticamente. Na história da Europa Ocidental foram as instituições
que se chamou do Estado do Bem-Estar que conseguiram produzir os
níveis menores de desigualdade. Mesmo na tradição americana, que é tida
como a mais liberal, é uma ilusão pensar que foram os mecanismos de
mercado. Foi aí, precisamente na Grande Depressão que surgiram com
maior força elementos também do Estado do Bem-Estar, que a retórica
liberal norte-americana oculta como tendo sido de iniciativa estatal.
Seria longo alinhar as razões pelas quais foi pela política e não pelos
automatismos de mercado que se conseguiu reduzir os níveis de
desigualdade nas experiências mais exitosas da democracia
representativa. Mesmo na sua periferia e, sobretudo, falando da periferia
latino-americana, embora nunca se tenha chegado a nenhum Estado do
Bem-Estar - os nossos se parecem muito mais com o Estado do Mal-Estar
– percebe-se pela narração da experiência mexicana - na palavra aqui do
companheiro Victor Quintana - como a pretensa instalação de
automatismos de mercado elevou, de novo, os níveis de desigualdade
mexicana a patamares que os mexicanos não conheciam há mais de 50
anos. Mesmo que o Estado criado pela revolução mexicana tenha sido
eivado de um forte componente autoritário e carcomido por uma corrupção
talvez sem paralelo. Mas este estado que tem no governo o senhor Fox –
rapôsa em inglês, como sabemos -é pior do que a experiência mexicana
anterior, autoritária e corrupta. O caso brasileiro, que conhecemos mais,
confirma a experiência mexicana, assim como a argentina e a chilena.
Então, o ruim da história é que a dinâmica capitalista está tornando a
política irrelevante para as classes dominantes e inacessível para as
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classes dominadas. Irrelevante do ponto de vista de que as grandes
questões, as grandes decisões, passam por fora do sistema representativo
e não estão ao alcance das instituições que a democracia criou para
veicular esta reivindicação da parte dos que não têm parte. Qual é o caso
mais dramático entre nós que explicita essa irrelevância da política para as
classes dominantes na América Latina? Sem dúvida, O caso da
Venezuela, onde a burguesia venezuelana com seus aliados, com o apoio
norte-americano e da Espanha, fortemente insuflado pela mídia, operou
simplesmente a tomada do poder político pelo presidente da
FEDECÁMARAS, a superfederação das federações das
empresas.Reduziram o poder político ao poder econômico, anulando a
separação entre os campos dos dois poderes, que o próprio liberalismo
elevou ao estatuto de princípio fundamental. Isto mostrou a irrelevância da
política como método de ação dentro da sociedade capitalista.
Isto mostra a chamada crise da democracia representativa, a principal
forma da política na longa experiência que vem se
universalizando.Passamos então de uma situação em que a esquerda, e
eu me incluo nela, fazia a qualificação da democracia como “burguesa” e
não lhe reconhecíamos o caráter, contraditório, democrático da
democracia. Mas dessa situação de apelidar “democracia burguesa”
transitou-se a uma outra, oposta e igualmente perigosa. Aquilo que na
senda do discurso político dos anos 20 e 30 do século XX, chamou-se
“cretinismo parlamentar”, remember Carl Schmitt e a “conversa sem fim”
dos parlamentos. Do zero ao infinito. Então louva-se que hoje praticamente
não há sistemas totalitários ou mesmo autoritários. E também declinou o
número de tiranos, tiranetes, ditadores e chefetes. Aí chegamos ao
paraíso. E isso ocorre precisamente quando a política torna-se irrelevante.
O paradoxo da ampla democratização no mundo é que as instituições
democráticas e representativas não funcionam mais. Não funcionam para
fazer a correção das assimetrias de poder econômico e político dentro do
sistema.
A arena política, dos partidos e das instituições representativas, foi
abandonada pelo poder econômico e o poder político foi transformado em
um simulacro. Em tradições liberais mais afoitas como a norte-americana,
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que detém a mais longeva experiência democrática mundial, os gringos
com seu espírito pragmático se deram conta logo cedo que os mecanismos
da democracia representativa eram insuficientes para processar os novos
interesses criados pelo capitalismo mais dinâmico do planeta. Então
inventaram os lobbies que são uma forma, também institucionalizada,
reconhecida, de pressionar por fora do sistema representativo. Em outras
tradições paradoxalmente menos liberais e mais cínicas, como a da própria
Europa e as da periferia capitalista, os lobbies sequer são
institucionalizados; em certas práticas do capitalismo asiático, não há nem
necessidade de lobbies: as classes dominantes são donas do poder
político, como na experiência do Partido Democrático no Japão, por
exemplo.No Brasil, quem passeia pelos corredores do Congresso Nacional
logo reconhece os lobistas:todos têm cara de lobistas; Lombroso estava
certo. E estão não oficialmente, porque essa espécie de cinismo larvar das
nossas instituições não reconhece o que os americanos já reconheceram
faz mais de um século.
O que nos diz tudo isso? Diz que as formas da democracia representativa,
o principal lugar onde se exerce a política, são claramente suficientes para
processar os novos conflitos sociais, econômicos e de interesses, no
capitalismo globalizado. O que não quer dizer, absolutamente, que
devemos colocá-las de lado, mas quer dizer sim que é preciso acrescentar
às instituições da democracia representativa novas formas de fazer
política.Por quê? Porque ela tornou-se irrelevante para os que dominam e
inacessível para os que precisam fazer reivindicações, isto é, ação política.
Tomou-se conhecimento agora de uma pesquisa da Unesco, realizada em
vários paises da América Latina em que se perguntava aos cidadãos pelo
valor da democracia. A resposta foi surpreendentemente negativa. A maior
parte dos latino-americanos respondeu que talvez fosse preferível um
regime autoritário, desde que satisfizesse a certas demandas sociais. Aí é
que mora o perigo. Porque não está provado que regimes autoritários
satisfaçam melhor às necessidades da população que reivindica do que
regimes democráticos. A tragédia é que tampouco os regimes
democráticos estão satisfazendo.
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Mas não nos apressemos a ver componentes atávicos de autoritarismos
nos nossos povos. Se se fizesse a pergunta a cidadãos dos países
desenvolvidos, iríamos encontrar algo muito parecido. Fazendo a pergunta
diretamente, provavelmente tem-se uma resposta positiva. Inverta-se a
pergunta: qual é a relevância da política para a sua vida cotidiana? Então
se obterá a resposta, nos países desenvolvidos, de que ela é irrelevante.
Desde os membros das classes dominantes, passando pelas classes
médias, pelos liberais e pelo operariado e trabalhadores de serviços,
responderão que a política é irrelevante mesmo.Onde está a resposta a
essa enquête que não foi feita? Nas eleições norte-americanas. Só 25%
dos eleitores escolhem o Presidente da República Norte Americana. Só
25%. Por quê? Como a eleição é de comparecimento voluntário, o grau de
abstenção nas eleições americanas é fantasticamente alto e o presidente é
eleito pela metade dos eleitores que comparecem. A França mostrou
também de outra maneira que a política pode se tornar irrelevante. Na
última eleição presidencial a esquerda considerou que no feriado eleitoral,
ela devia ir para a praia, mesmo que as praias francesas não sejam lá
grande coisa.E no primeiro turno deu Chirac e Le Pen. A opção francesa
ficou entre o pescoço e a guilhotina. A opção do mal menor, ou do menos
pior. Correram socialistas, toda a esquerda e os liberais – lugarzinho difícil
no espectro político francês - às urnas no segundo turno para votar em
Chirac, para evitar que a guilhotina se apoderasse da presidência da
república francesa, para decepar Marianne. O primeiro turno foi um outro
modo de ver que para o cidadão comum está fazendo pouca diferença a
política. Nos países desenvolvidos, isto é trágico.
Mas nas periferias isso é devastador. Porque você renuncia ao único
mecanismo de fato criado dentro da civilização política do capitalismo para
corrigir as desigualdades e transformar carências em direitos. Como é que
estão as coisas entre nós, América Latina e Brasil? Como é que está a
correlação de forças, na nossa langue de bois? Ela é extremamente
desfavorável à democracia, à política como “reinvidicação da parte dos que
não têm parte”.As grandes questões não passam pelo sistema
representativo, estão fora. Há, em primeiro lugar uma espécie de
desterritorialização da política. Ela saiu fora do território nacional e fora do
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“alcance de método” das classes dominadas.Elas estão, agora, no âmbito
de instituições supranacionais. Uma das quais, aliás, a mais fraca delas
que é a UNCTAD, que não tem nenhum poder decisório, está se reunindo
nas nossas costas, no Palácio das Convenções do Anhembi, às margens
desse desagrádavel Tietê. A UNCTAD é fraca porque não decide nada.
Mas os que decidem, como o Fundo Monetário Internacional, a
Organização Mundial do Comércio, o Banco Mundial, a Agência
Internacional de Energia Atômica, na verdade decidem as políticas dos
países mais fracos do sistema capitalista. Decidem nossas políticas.
Eu estou esquematizando muito, evidentemente, e dramatizando, um
recurso necessário no discurso político. Mas a verdade não se afasta muito
disso. Há limites impostos, como por exemplo o superávit primário nas
contas fiscais do Estado. Se se acordou com o Fundo Monetário um certo
nível de superávit primário e não se o cumpre, a retaliação vem
imediatamente. A retaliação vem pelo mercado.Não estar cumprindo a
meta significa que não pode pagar a dívida. Vai dar um calote. E aí o risco
Brasil dispara lá pra cima. Quando o risco-Brasil vai para cima, a
credibilidade do Brasil vai para baixo. Há uma queda do valor dos títulos da
dívida externa brasileira, e os investidores deles se desvencilham, o que
faz entrar em ação a espiral descendente. A guilhotina funciona
imediatamente. As instituições financeiras vão elevar a taxa de juros para
emprestar ao Brasil, externamente, e internamente as mesmas instituições
elevam também a taxa de juros para empréstimos da dívida pública interna.
Então esse é o primeiro ponto em que a política deixa de estar ao alcance
dos cidadãos de cada um de nossos países.E o interessante é que o risco-
Brasil é um procedimento de avaliação realizado por empresas privadas
que trabalham nos mercados financeiro e de capitais! Elas podem declarar
a falência dos países! Então é como se o nosso voto não valesse nada.
Como o George Soros disse descaradamente, o voto dos brasileiros não
pode decidir o que o Brasil deve escolher. Quem tem esse direito, disse
ele, são os investidores.Votem em fulano ou sicrano, tanto faz, disse ele.
Essa é uma questão importante que não é vista como crise da política: é
vista como crise dos estados devedores.Quando ela deve ser entendida de
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outra forma, para alcançarmos o entendimento de qual é o desgaste que a
forma representativa e as formas da política estão sofrendo entre nós.
Para não falar das grandes empresas multinacionais que atuam nas
nossas economias.Este é um tema importante porque se pensa sempre,
sobretudo nós que trabalhamos nesses organismos que a gente chama
com a boca cheia de “sociedade civil”.A descoberta da “sociedade civil” foi
uma enorme novidade, preenhe de consequências, para uma tradição
estadolatra como a brasileira e, em geral, a latino-americana.E fora dessa
sociedade civil estão, na tradição de Gramsci, o estado e o mercado. Só
que a empresa privada por si mesma, é um ator político de primeira
grandeza. E, sobretudo devido ao seu tamanho.
Pensa-se que a empresa só atua no mercado. Na verdade ela atua no
mercado e atua na sociedade. Ela cria regras de comportamento que
anulam a capacidade da política de corrigir as assimetrias de forças no
capitalismo contemporâneo. O exemplo mais banal dá-se no nosso
cotidiano. Hoje, se tivermos a sorte, vai-se pra casa, e como está frio,
alugamos um filme e tomamos uma sôpa quente.Ligou o aparelho, a
legenda lhe traz a primeira advertência: “O senhor não pode usar este filme
senão para fins de exibição privada. Se for usado para qualquer outra
exibição, estará incorrendo nas penas determinadas pela lei”.Você diz isso
é banal, o senhor está exagerando. Mas aí eu pulo e vou para o tema do
companheiro Victor, e de muitas organizações que tratam disso
cotidianamente. É o tema também do MST e do Greenpeace, os
transgênicos. A escolha de camponeses, trabalhadores rurais, pequenos
proprietários, está bloqueada pela patente da Monsanto. Ali há um veto
claro. O sistema chegou a tal ponto que o capitalismo já anulou a
propriedade do valor de uso da mercadoria. Isto é, a utilidade que você dà
à mercadoria. Pois este valor de uso, uma espécie de pedra fundamental
do sistema,está anulado nos transgênicos. Você só pode fazer com a
semente transgênica aquilo que a Monsanto inscreveu no seu código
genético. Você não pode usá-la, por exemplo, como semente. Os
transgênicos avançam do mundo vegetal para o mundo animal. Esse tipo
de coisas torna as empresas um ator político por excelência. Não somos só
nós que estamos na sociedade civil. Elas estão mais do que nós e não
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temos muitos meios de anular essa intervenção da empresa na sociedade
civil e na política porque isto corre por dentro daquilo que se consome.
Então, são restrições desse tipo que terminam naquilo que minha amiga
Vera da Silva Telles, socióloga da USP e colaboradora do Polis e de várias
de nossas ONGs, chama com muita graça de “brincar de fazer casinha”.
Fazemos nossas organizações, tentamos mobilizar a sociedade para as
lutas, vocalizamos o que ainda não tem nome no léxico político e...? Nada.
Porque o que fazemos afeta muito pouco o poder das empresas, das
instituições supranacionais e das instituições estatais. É claro que contra
isso vem se reagindo. As grandes manifestações, como o companheiro
Victor Quintana conseguiu mostrar, têm uma certa capacidade de deter
medidas predadoras. Mas é pouco em relação ao poder que as empresas
têm no campo da política. Nós pensamos, geralmente, que o campo da
política é nosso e que o campo das empresas é o campo da economia.
Não é verdade. O campo da política é também um campo dominado pelas
empresas. Esse processo na periferia foi agravado, evidentemente, pelo
processo de globalização. É um conjunto de fenômenos que vem erodindo
o campo da política. O campo onde os cidadãos decidem sobre sua
república, sobre sua democracia, sobre seu estado.
Nesse campo, o movimento simultâneo de globalização e reestruturação
produtiva, na periferia tem um efeito devastador. Que se mede, em
primeiro lugar, pelo porte das empresas frente aos poderes nacionais. O
porte de qualquer das grandes empresas mundiais frente aos poderes
nacionais é simplesmente desproporcional. Em segundo lugar vem uma
reestruturação produtiva que mudou a relação entre as classes sociais. Ao
mudar essa relação entre as classes sociais, ela escanteia boa parte das
organizações que a antiga institucionalidade criou.Por exemplo, o poder
dos sindicatos, que foi na experiência ocidental, um lugar onde essa
assimetria de poder entre patrão e empregado podia ser corrigida, podia
ser atenuada. Com a reestruturação produtiva os sindicatos perdem
espaço, em todo o mundo. Há mais. Há um processo de subjetivação do
individualismo predatório no interior das massas operárias. Vê-se pelas
pesquisas que se fazem na universidade. O processo de trabalho chamado
de células, é um processo de subjetivação do individualismo predatório.O
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que era competição entre trabalhadores chega, através desses processos,
a níveis quase inacreditáveis. E tudo se faz em ambientes que são cleans,
limpos. Este hotel perde de longe para qualquer fábrica, por exemplo, de
fármacos. É uma espécie de opressão limpa. Operários e sobretudo
operárias são jogados na competição mais desapiedada. E as instituições
de classes criadas para corrigir essa assimetria são inteiramente
escanteadas. Isso está passando para a subjetividade de trabalhadoras e
trabalhadores.Produzindo o que Grammsci chamava hegemonia. Está
construindo uma nova forma de pensar, de ver o seu trabalho, de ver a
relação com o outro. Este é o dado, provavelmente, mais poderoso desse
processo.
Então a questão exatamente é a de criar novas formas de política. De
reinventar a política. Essa reinvenção está se dando. Essa reunião é uma
prova dela. As ONGs são instituições criadas por fora do sistema político
tradicional, que começaram a vocalizar e processar aquilo que o sistema
representativo não sabia nem podia fazer, incluindo-se aí os partidos
políticos. Mas vejam a capacidade do sistema de cooptar. Porque as
organizações das classes dominantes começaram a copiar as ONGs e se
apresentam como iniciativa cidadã. Na verdade, trata-se de uma forma de
apropriação de um novo campo da política que foi inventado fora dela.
Todos os grandes temas da novidade política foram trazidas por essas
organizações porque o sistema antigo não tinha capacidade de processálas.
Os partidos, na velha tradição esquerdista na qual eu me criei, tinham
um “departamento feminino”, encarregado de preparar as festas,
ornamentá-las, cuidar da creche, etc. E era tudo. Movimento feminista
mesmo é coisa que estava subordinada à classe. Até que Elizabeth Lôbo,
que infelizmente já nos deixou, veio nos ensinar que a classe tem sexo. E o
tema do ambiente veio também como uma demanda que o sistema não
sabia como processar.Estão aparecendo, portanto, para além disso, novos
temas, novos conflitos, que esse sistema não tem capacidade de
processar.
É, portanto urgente a criação de novas formas de fazer política. O Plínio de
Arruda Sampaio propõe os clubes democráticos. É como se nós
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tivéssemos que reinventar os clubes jacobinos. E vamos ter que reinventálos.
Para criar um novo espaço de conflito, um novo espaço capaz de dizer
aquilo que o sistema representativo já não tem capacidade de dizer porque
ele foi completamente absorvido. Ele é irrelevante. O Fábio Comparato
que é uma espécie de santo, tem uma proposta de uma confederação
geral de ONGs, associações civis e políticas,associações populares, para
formar um contra-poder.Nós não queremos que ele morra, quanto mais ele
durar melhor,mas quando ele morrer, será santo certamente, junto com
Paul Singer.
Não temos que ter piedade de fazer a crítica à democracia representativa.
Se não a fizermos, a direita fará. E a direita faz uma crítica que é
simplesmente afastá-la, como mostra a história da direita brasileira,
vivandeira de quartéis. A expressão foi do marechal Castelo Branco, que
os cariocas chamaram de “O Corcunda do Nosso Drama”.Temos que fazer
a crítica para fortalecê-la e para criar novos campos que sejam capazes de
processar os conflitos que ela não sabe processar ou que ela, pela sua
cooptação, já é incapaz de processar.
Se olharmos o sistema representativo brasileiro hoje, os partidos
respondem exatamente a quê? É fácil dizermos e devemos continuar a
dizer, porque água mole em pedra dura tanto bate até que fura, o PFL é
um partido de direita no Brasil. Mas ele é mesmo um partido de direita? Ele
representa os grandes interesses de multinacionais, das grandes empresas
e tal? Certamente não. Ele pode ser um partido que serve à direita, mas
ele não tem mais a capacidade de expressar esses interesses. Eles são
muito maiores do que o PFL pode processar. Nós podemos dizer que o PT
é o partido das grandes massas? Já foi, mas provavelmente hoje não é. E
não é não por questões de caráter ou falta de caráter. Não é porque a
política faz esse processo: no momento em que o partido de oposição
passa ao poder, ele seqüestra a sociedade civil. Ele arrasta parte da
sociedade civil para dentro do governo. E ao arrastar, ao fazer essa
operação, ele anula a capacidade de reivindicar. É só por isso que é
preciso contestar sempre, criar novos campos de contestação e inventar
novas organizações. Senão perde-se as duas batalhas. A da política e a
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da capacidade de reivindicar e de corrigir as assimetrias de poder
existentes numa sociedade como essa.
Vê-se esse drama precisamente no governo Lula, que se empossa com o
respaldo de 62% da votação brasileira.Algo que só ocorreu na história
republicana nos últimos 50 anos com Jânio Quadros. Mas o que é que
ocorreu? A eleição de Lula mostrou, mais do que nada, que o sistema
político estava ultrapassado, pois não era capaz de processar esses novos
interesses, incluindo o desgaste que o neo-liberalismo estava sofrendo no
Brasil. Aliás, é bom deixar de otimismo. Nós não estamos exatamente
numa era pós-neoliberal. Ainda não.
A eleição mostrava que o sistema partidário havia sido ultrapassado.
Então, o governo se estabelece e remonta o sistema. Como se isso
significasse alguma coisa. Bota quase todos os partidos dentro do governo.
Escolhe um Conselho de Desenvolvimento Econômico e Social, e pensa
“representar” a sociedade brasileira no Conselho e no Ministério. Três
Ministérios para os banqueiros, já é muito. Quatro para os industriais, dois
para o agro-negócio, cinco sindicalistas, três intelectuais, que todo pudim
se enfeita com cereja. Bota a cerejinha em cima do pudim e a gente o
come com mais gosto. E quatro ou cinco ongueiros, que é a sociedade
civil. E pensa: agora a gente governa. Não, não governa, porque esse
sistema não tem mais eficácia. Ele foi ultrapassado. A sua eleição
ultrapassou esse sistema. Só você não reconheceu isso. E ao remontá-lo
pensa que governa e não governa. Qual foi a decisão importante que
passou no Conselho de Desenvolvimento Econômico e Social? Nenhuma.
Nenhuma porque não pode passar. E os partidos então no governo mudam
qualquer representante, nos Ministérios e tudo continua igual.
É preciso, portanto, criar novos lugares de fazer política, novas formas de
fazer política. Inventar mesmo, porque a política é permanentemente uma
invenção para podermos voltar à capacidade de reivindicar, no mínimo, e
desafiarmos a desigualdade enorme de forças que existe no sistema. Na
minha juventude, e isso já vai longe, eu subi muitas vezes no caixão de gás
para blasfemar contra a política. Mas nunca foi tão importante fazê-la
quanto agora. E voltamos ao Chico Buarque dos bons e velhos tempos,
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para dizer a quem estiver de plantão no governo: “Você que inventou a
maldade/ faça-me o favor de desinventá-la”.
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