A FARSA DA PROPOSTA INOVADORA DO MEC PARA A EDUCAÇÃO.
Cardozo, Jeorge Luiz*.
Contam-nos as estatísticas que uma enormidade de jovens mal chega ao ensino médio e, entre eles, outra enormidade abandona a escola sem completar seus estudos. Além disso, a qualidade do ensino deixa a desejar, a considerar o desempenho dos alunos nas diversas avaliações a que são submetidos. Nada disso é novo.
O Ministério da Educação então anunciou uma mudança profunda na concepção curricular, a partir de um programa denominado “ensino médio inovador”. Não foi sem alarde que a imprensa divulgou as mudanças vindouras, anunciando-as como uma “reforma do ensino médio”. Quando a sociedade percebe que a “educação vai mal e a escola pública, pior”, apresentar qualquer proposta a título de “inovação” é coisa que se faz de caso pensado: a idéia é sempre simpática, pois advoga o “novo”, e faz considerar qualquer oposição ou resistência como “velha”, “reacionária”, “atrasada”. Trata-se de um recurso retórico preciso e eficaz, apesar de amplamente repetido: nova república, nova escola, nova ordem mundial.
Muito barulho por pouco
Contudo, a proposta é menor do que parece: trata-se de um programa de financiamento a projetos pedagógicos experimentais em escolas que encampem um currículo “inovador”, segundo certos pressupostos didáticos e metodológicos. Ademais, no primeiro ano, só cem escolas serão contempladas no Brasil todo, um número muito reduzido para que se tenha qualquer impacto sensível.
O MEC quer induzir assim as políticas educacionais praticadas pelos Estados, majoritariamente responsáveis pelo ensino médio, sem que estes ofereçam as condições necessárias nem recursos financeiros adicionais.
Neste quesito, o governo Lula repete os equívocos do governo anterior. Ao pretender uma reforma, apresenta medidas isoladas e dispersas, que assim até representariam avanços, mas que são neutralizadas por omissões e recuos na política educacional implementada e, ao não darem respostas satisfatórias aos problemas apresentados, os aprofundam ainda mais.
O sentido da “inovação”
A questão é saber como, nas atuais circunstâncias, repercutirão para dentro das escolas as “inovações” que o programa sugere. Partem das alturas das concepções curriculares, sem garantir no chão da escola as condições necessárias para o currículo proposto. Ora, o programa apresentado se fundamenta nos Parâmetros Curriculares Nacionais que, não por acaso, após mais de 10 anos ficaram no papel: nas escolas ainda não se vê um tratamento às “matérias” de modo que os conteúdos curriculares estivessem integrados, promovendo uma desejável abordagem interdisciplinar; permanece a tradição das disciplinas estanques.
A imprensa noticiou ainda que a intenção do MEC fosse a de eliminar as 12 disciplinas atuais, agrupando os conteúdos curriculares em quatro grupos mais amplos, por áreas de conhecimento afins. Porém, como as aulas serão atribuídas aos professores, especialistas que são em disciplinas específicas?
Não é por acaso que os sindicatos voltaram-se a este ponto em particular, acerca da “empregabilidade” do professor, a despeito de qualquer consideração metodológica. Em tempos de contenção de recursos, isso pode se configurar em estratégia sistemática de demissões.
A proposta ainda amplia a carga horária para três mil horas, 600 horas a mais que serão destinadas a atividades de livre escolha dos alunos, sem deixar claro quem será responsável por ministrar tais atividades. Em tempos de privatização e terceirização, isso pode servir de expediente para toda espécie de “parcerias” público-privadas, em detrimento da atuação dos professores.
Mais do mesmo
A “inovação” aqui vem mal disfarçada, reforçando o grande consenso construído em torno da “pedagogia da competência”, ao conceber o processo educativo a partir do desenvolvimento de competências e habilidades, mesuráveis em níveis, aquém ou além do adequado — sobretudo porque possibilitam, a despeito da diversidade entre as escolas, comparar resultados a partir de avaliações de desempenho nacionais e padronizadas. Em resumo, da “inovação” da pedagogia oficial decorre o atual sistema de avaliação, dos mesmos discursos e práticas que se repetem, com nuances, do PT ao PSDB, de mais provinhas e provões.
A que se deve esta “resistência à inovação”, já que nada há na proposta que estivesse antes legalmente impedido de ser feito? A resposta, a mais difundida, à esquerda e à direita, num lamentável consenso, é a da (má) formação dos professores, responsabilizados assim pelo fracasso sistêmico da educação nacional.
Se as estatísticas não se alterarem, então a culpa é dos professores? Segundo deduzimos do empenho retórico dos gestores da política educacional, a “inovação” é uma questão de “mérito”; porque também aferido em provas, ele é isolado de outras variáveis que incidem sobre a escolarização. Mérito, assim, é tão somente a adesão, mais ou menos voluntária, do professor ao programa estabelecido.
Faltam, entretanto as condições para que docentes até se apropriem das orientações curriculares e as transformem em práticas de sala de aula. E se o desempenho em uma avaliação resulta em qualquer ganho pecuniário (para a escola ou para o professor), melhor é fazer com que os alunos obtenham “bons resultados” – o que não é necessariamente, o mesmo que ter aprendido. Converte-se o processo educativo em produção de resultados pré-estabelecidos, lançados nas estatísticas como “melhoria da qualidade”. A sanha em avaliar dá a tônica das políticas educacionais nos últimos 10 anos, como se a crise existisse nas estatísticas, mas não no chão da escola. A “reforma” e toda a política educacional parecem esquecer-se da escola; visam produzir resultados positivos nas avaliações e a partir delas.
Velho contraponto, ainda necessário
Paradoxalmente, o real sentido de uma reforma e da inovação no ensino seria antes atender às “velhas” reivindicações dos profissionais da educação, sem o que toda “inovação” é meramente retórica.
Qualquer experimentação pedagógica que pretenda uma abordagem interdisciplinar requer tempo para a discussão entre os professores a fim de afinar os encaminhamentos adotados, planejar o processo e sua avaliação, bem como para atualização e formação contínua. Isso também tem a ver com o grau de autonomia da escola, para que ela paute e trabalhe a partir de suas especificidades. Estas condições são de tal modo imperativo que, caso não sejam satisfeitas, toda experimentação dependerá da sorte e do acaso para vingarem em boas experiências, ou redundarão na frustração das tentativas, em equívocos quanto a concepções e encaminhamentos práticos, em práticas meramente protocolares, de repetição da cartilha adotada.
Se o projeto aposta ainda na multiplicidade de trajetórias para os alunos é necessário estabelecer um número adequado de alunos por sala de aula e, além disso, um número limite de turmas a que um professor se dedica. Essas são variáveis esquecidas nas discussões sobre qualidade do ensino, quando não são rechaçadas pela tecnocracia federal, estadual ou municipal, como se isso não tivesse influência no desempenho dos alunos.
E para tudo isto, deveríamos saltar dos atuais 4 nem 5% do PIB de investimento público em educação para o mínimo de 7, senão 10%, como preconizado no nosso Plano Nacional de Educação. A expectativa de um aumento significativo de recursos, inscrita no programa de governo de Lula em 2002, não se tornou real compromisso e ficou como uma amarga nostalgia. Possibilidades são criadas nas opções políticas adotadas e, lamentavelmente, optou-se uma “inovadora continuidade”, sem a ousadia necessária para que de fato inovássemos.
* Jeorge Luiz Cardozo - É Professor da Faculdade Dom Luiz, Graduado em Filosofia (UCSAL/2000), Especialista em Educação (UNEB/2003) e Assessor Técnico da Secretaria Municipal de Educação de Salvador.
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