sexta-feira, 19 de março de 2010

EDUCAÇÃO DIREITO DE TODOS (AS).

EDUCAÇÃO DIREITO DE TODOS (AS).






Cardozo, Jeorge Luiz*



O direito à educação pública, laica, gratuita e de qualidade é condição básica para que possamos construir uma sociedade justa, pois a ela cabe o papel de formar cidadãos e cidadãs capazes não só de atuar, mas principalmente de transformar a realidade em que estão inseridos. O fim das desigualdades exige uma educação de qualidade para todos, voltada não só para o desenvolvimento tecnológico e econômico, mas principalmente humano. Dessa forma, a defesa do direito à educação é uma bandeira histórica de todos aqueles que lutam por transformações profundas em nossa sociedade, o que os coloca em choque direto com os interesses privados que dominam o capitalismo, em suas essências excludentes.

A face mais clara dessa disputa é a possibilidade de a educação ser explorada comercialmente, através de instituições privadas. Este embate esteve presente no processo Constituinte, no qual os movimentos em defesa da escola pública conquistaram importantes vitórias, como a garantia da educação como direito de todos e dever do Estado, mas também sofreram derrotas para as instituições privadas e religiosas. Luta que continuou na elaboração da Lei de Diretrizes e Bases (LDB) em 1996 e na tramitação do Plano Nacional de Educação (PNE), em 2001, mas que, principalmente, se disseminou pelo interior das redes de ensino e das próprias escolas, onde projetos e programas privatizantes foram implementados pelos governos neoliberais.

Além de interesses mercantis mais explícitos, como as terceirizações de serviços e a comercialização de materiais educacionais, essa luta também assume outra dimensão: a estruturação da educação pública a partir de um modelo de gestão e produção próprio do setor privado.

As políticas educacionais e a mercantilização da educação.

Desde o início dos anos 90, o Brasil é alvo de políticas orientadas por organismos internacionais. O Banco Mundial, através de seus programas de financiamento, empreendeu nos países em desenvolvimento uma política de reformas estruturais, cujo centro é a liberação dos mercados, a redução do papel do Estado e a transformação de direitos sociais em serviços exploráveis comercialmente.

A educação nas políticas do Banco Mundial cumpre dois objetivos: constituir um nicho comercial a ser explorado, principalmente no ensino superior, e disputar ideologicamente a população para o ideário neoliberal, naturalizando os efeitos da intensificação dessas relações de mercado, buscando inclusive resignar os segmentos sociais mais excluídos. Durante a gestão de FHC, essas políticas foram aprofundadas. Com estas orientações, o ensino fundamental foi priorizado, em termos de ampliação do atendimento, ao mesmo tempo em que o ensino superior foi totalmente aberto à exploração por instituições privadas.

O esforço de universalização do ensino fundamental se deu por uma política de fundos, que levou a mudanças na relação entre os entes federados e potencializou processos de municipalização deste nível de ensino. Enquanto estados e municípios reduziam drasticamente sua atuação na educação infantil e no ensino médio, a União acabou assumindo papel meramente controlador, destinando recursos a projetos que priorizam principalmente o setor privado e o pagamento de juros da dívida pública.

Sob o discurso do combate aos processos de exclusão, provocados pelos altos índices de reprovação, é implantado um falso modelo de progressão continuada, sem preparação dos docentes ou estruturas para seu funcionamento.

Na verdade, um sistema de aprovação automática, cujo objetivo era a regularização de fluxo e a redução de custos.

Atendendo à diretriz de redução da estrutura estatal, promove-se o fechamento de escolas e a redução de pessoal, alcançados pela superlotação de salas e pela segmentação das escolas por níveis de ensino. Esse processo, além do impacto econômico, cria condições ideais para a municipalização e provoca uma fragmentação no trabalho docente, reduzindo assim também a capacidade de resistência dos professores às mudanças.

Paralela a estas ações, vemos uma ampla campanha nos meios de comunicação que procura atribuir a solução dos problemas da educação à ação voluntária da sociedade, apontando claramente para uma sistemática de desresponsabilização do Estado e de necessidade de parcerias com o setor privado.

As avaliações nas políticas neoliberais

O governo FHC inicia um processo de direcionamento do mercado educacional e de indução das políticas públicas dos estados e municípios através de exames centralizados. A criação do Provão para o ensino superior é um exemplo desta política, que abre mão de uma atuação efetiva do Estado ao mesmo tempo em que inicia a construção de um modelo competitivo em consonância com a lógica dos interesses privados.

Não demorou para que este modelo fosse reproduzido na rede estadual paulista, através do SARESP (Sistema de Avaliação do Rendimento Escolar de São Paulo), iniciando uma nova etapa no avanço das políticas neoliberais: a criação de sistemas de premiação e punição. No final dos anos 90, no estado de São Paulo, os resultados do SARESP, somados aos indicadores sobre a adequação da escola aos padrões da Secretaria Estadual de Educação (SEE-SP), são utilizados para a implantação do bônus para os professores.

Inicia-se um processo de competição entre escolas e docentes, que ano a ano são seduzidos pelas exigências do governo, desconsiderando necessidades particulares das escolas e dos alunos e abrindo mão de direitos trabalhistas para obtenção de melhores prêmios.

Pela primeira vez, o caráter ideológico dessas políticas floresceu: a competição leva a um individualismo cada vez maior, ao mesmo tempo em que legitima a idéia de que as desigualdades são resultado da falta de empenho individual ou preparo dos profissionais e demais membros da comunidade.

A resistência dos professores e suas entidades impediram que estas políticas alcançassem seus objetivos de imediato. Mas pouco a pouco os mecanismos de competição foram minando a capacidade de mobilização.

A falta de compromisso com o financiamento

Para os defensores desta política não faltam recursos para a educação. Mesmo num país onde o déficit educacional é evidente: com 14,2 milhões de pessoas com 15 anos ou mais analfabetas, em que a média de anos de estudo da população mal chega a 7 anos, com 21,2% das crianças entre 4 e 5 anos não atendidas pela educação infantil e mais de 15% dos jovens de 15 a 17 anos fora do ensino médio. O gasto público com educação estacionou em torno de 4% do PIB há mais de uma década. Em países desenvolvidos a média é de mais de 6%. Para o Brasil avançar na qualidade da educação precisaria investir por vários anos algo em torno de 10% do PIB.

Além disso, mecanismos como o FUNDEB, que em tese assegurariam recursos para o atendimento da educação básica, sofrem diretamente os efeitos dessa política que prioriza o setor financeiro em detrimento das áreas sociais, tendo seu montante reduzido através da DRU (Desvinculação de Receitas da União) e também pela significativa concessão de isenções fiscais que afetam a arrecadação.

Só neste ano, 9,2 bilhões de reais evaporaram das receitas dos fundos estaduais que formam o FUNDEB. É esta situação que levou nosso mandato a apresentar o Projeto de Lei n° 6266/2009, que obriga a União, Estados e Municípios a reporem os recursos perdidos em função das renúncias fiscais.

A implantação do sistema meritocrático

Em São Paulo, a política de bônus, aplicada há quase 10 anos, precarizou ainda mais a carreira docente, provocando uma grande estagnação salarial.

Somada a um quadro no qual grande parte dos professores são temporários, pela insuficiência de concursos, resultou nas condições para que a Secretaria iniciasse a implantação da chamada valorização por mérito.

O primeiro passo foi estabelecer, em 2008, uma prova para a contratação de professores temporários, utilizando os resultados para fazer campanha de ataques aos professores nos meios de comunicação. Divulgando dados parciais, a então secretária Maria Helena Castro passou para a população a imagem de que os docentes não eram capazes de responder às questões da prova, achando um bode expiatório para os problemas de qualidade na educação paulista, ao mesmo tempo em que apontava a solução: premiar alguns para estimular ainda mais a competição.

Em seguida, o governo apresenta um novo regime para os professores temporários, que só poderão ser contratados por um ano, cumprindo um interstício de 200 dias para nova contratação, além de não terem os mesmos direitos dos outros profissionais no que diz respeito a licenças, faltas e benefícios. A provinha ganha caráter eliminatório para aqueles que iniciaram na rede depois da criação do SPPrev, em junho de 2007. Professores temporários que ingressaram antes ganharam uma estabilidade, com um mínimo de horas semanais, mas se não forem bem na provinha não poderão dar aulas.

Ao mesmo tempo, são tomadas medidas que modificam totalmente a carreira do magistério no estado. São criadas duas novas jornadas, uma de 12 e outra de 40 horas semanais, e estipula-se que os novos concursos terão uma nova fase, com caráter eliminatório, que consiste num curso de formação de 4 meses. Estas medidas mostram duas coisas: a fragmentação do trabalho, incentivando a alta rotatividade de professores nas escolas, e também uma ação para enquadramento e doutrinação dos professores, barrando aqueles que são críticos às propostas impostas.

A competição por melhores salários

Com a aprovação do PLC 29/2009, o governo Serra alterou de forma drástica a carreira do magistério, vinculando a evolução salarial dos professores ao seu desempenho em exames aplicados periodicamente, implementando na prática um sistema de diferenciação e segmentação.

A lei aprovada estipula que a evolução nas faixas salariais se dará pelo cumprimento de requisitos e pela classificação no exame, a depender da disponibilidade orçamentária. Para alcançar a promoção para uma nova faixa, o professor deve cumprir um interstício de três anos entre cada evolução, permanecer na mesma escola por 80% desse período, ter freqüência compatível com critério a ser estipulado pela SEE, ultrapassar no exame a nota mínima estipulada para cada faixa e estar entre os 20% de sua faixa salarial que tiveram melhores notas.

Neste processo, o governo faz uma propaganda enganosa, passando a idéia de que os profissionais da educação serão valorizados, podendo alcançar altos salários, de que suas condições de trabalho estão cada vez melhores e, principalmente, de que está investindo na educação, quando na verdade empurra os profissionais para a lógica de competição, subordinando a superação dos problemas ao seu esforço e dedicação pessoal, ignorando todas as questões estruturais do sistema e, ao mesmo tempo, renovando o velho discurso de que os problemas seriam causados pela incompetência e supostos má qualidade dos profissionais, como aparece freqüentemente nas palavras do atual secretário Paulo Renato Souza (o mesmo que foi ministro de FHC da educação e ajudou a implementar essas políticas neoliberais na educação e, agora, faz o mesmo como secretario estadual por São Paulo).

Essa mudança na carreira vai além das questões de mérito e apresenta um instrumento que não se destina apenas a estimular a competição, mas sim a criar uma elite dentro do professorado. É um sistema de ranking; uma corrida pelos melhores lugares, com o nítido objetivo de tentar ludibriar a opinião pública e dividir a categoria.

Ao estabelecer, por critérios meramente financeiros, que até 20% poderão receber o reajuste, fica evidente que tal medida não tem de fato nenhum compromisso com a qualidade da educação: mesmo que todos os profissionais da rede atinjam um excelente resultado, no máximo 20% deles serão premiados. Ou seja, é um vestibular para os melhores salários.

Portanto, trata-se de uma desestruturação da carreira, uma justificativa para a estagnação salarial da grande maioria dos professores, que inclusive vai contra a isonomia salarial e joga na lata do lixo todo o acúmulo e conhecimento dos profissionais que por vários anos se dedicaram à rede.

Mesmo medidas que poderiam significar um avanço na carreira dos profissionais foram barradas, como é o caso do Piso Nacional do Magistério, que garantia que 1/3 da jornada seriam reservados para o trabalho pedagógico e de preparação das aulas, e que até hoje não foi implementado em função de ação judicial de governadores do PSDB e DEM.

Um sistema que retira a autonomia da escola e do professor.

Além do ataque direto aos profissionais do magistério, o governo paulista também implementou no último período uma série de programas que afetam profundamente os currículos e o funcionamento das escolas. A adoção de apostilas e materiais padronizados, distribuídos de forma fracionada ao longo dos bimestres e vinculados diretamente aos exames do SARESP, obriga o professor a se enquadrar na proposta, ignorando as especificidades de cada escola, as diferenças regionais ou mesmo a possibilidade de a escola desenvolver um percurso mais adequado ao perfil dos seus alunos.

A padronização, a partir de uma proposta curricular rebaixada, ignora a necessidade de organização do trabalho escolar a partir de um projeto político pedagógico, construído de forma autônoma e coletiva. E transforma o trabalho docente em ato mecânico e incapaz de responder às várias dinâmicas que se desenvolvem no dia-a-dia de uma escola.

O discurso neoliberal justifica essa padronização sob argumentos baseados em uma técnica, supostamente única e inquestionável, balizada exclusivamente pelo enquadramento nas estatísticas fornecidas pelas avaliações, que por sua vez atendem a uma lógica mercantil e quantitativa.

Temos assim um cenário totalitário, no qual o professor é coagido a se submeter à proposta oficial e os Conselhos de Classe e o Conselho de Escola funcionam burocraticamente para justificar, apenas no discurso, a gestão democrática da escola, cuja única autonomia é para a procura de parceiros que supram necessidades esquecidas pelo Estado. De seu lado, os estudantes desse sistema são como recipientes vazios, nos quais serão depositados os conhecimentos, como tão bem descreveu Paulo Freire, modelados para aceitarem e cumprirem seus papéis no sistema, ou fora dele, de acordo com as necessidades impostas pelo mercado. É um sistema injusto e excludente, com conseqüências gravíssimas a médio e longo prazo.

Como resultado da precarização das instalações escolares e da desigualdade social, chegamos a um cenário no qual predomina a desagregação, a intolerância, a violência, o medo e a barbárie, já instalada em muitas de nossas escolas, o que também é cinicamente ignorado pelo Poder Público.

A meritocracia no governo Lula

O governo Lula frustrou as expectativas dos profissionais da educação, das entidades representativas e dos movimentos organizados, que durante os anos 90 resistiram ao avanço das políticas neoliberais e combateram os processos de mercantilização da educação. Todo o acúmulo alcançado na luta pela Lei de Diretrizes e Bases e na construção do Plano Nacional de Educação foi colocado em xeque a partir do momento em que o governo não assumiu uma postura de mudança diante das medidas do governo FHC.

Maior exemplo disso é a manutenção dos vetos aos artigos do PNE que implicavam compromisso financeiro com a educação. Isso levou direções sindicais e dos movimentos a vacilarem diante de lutas históricas, abrindo de forma decisiva um espaço para a consolidação de políticas privatizantes, em especial em São Paulo. Situação esta que ficou ainda pior com a adesão do governo petista ao modelo baseado em sistemas de avaliação e ao discurso da competitividade e do mérito, levando à elaboração de programas que aperfeiçoam e aprofundam as políticas neoliberais na educação. É só ver como o governo Wagner tem tratado a educação aqui em nosso estado, contratando professores através do Regime de Direito Administrativo (REDA), e, desrespeitando até concurso já realizado.

Setores da mídia também se mostram aliados importantes na defesa da meritocracia, disseminando falsas idéias sobre a educação pública, tendo como contrapartida enormes benefícios financeiros. Um exemplo são os contratos milionários, realizados sem licitação, entre o governo do Estado de São Paulo e a Editora Abril. Um deles, de assinaturas da revista Nova Escola, foi denunciado pelo nosso mandato no Ministério Público Estadual e agora é alvo de ação judicial por improbidade administrativa.

O resgate da educação pública como direito e da escola como espaço de construção coletiva.

A meritocracia deveria ser a forma de governo na qual as posições hierárquicas são conquistadas, em tese, com base no merecimento e não por fatores como riqueza, classe social, raça ou religião. Um exemplo seria a idéia de concurso público, na qual as pessoas podem disputar um cargo em condições iguais. Entretanto, a palavra meritocracia é agora freqüentemente usada para descrever um tipo de sociedade onde riqueza, renda e classe social são designadas por competição, assumindo-se que os vencedores, de fato, merecem tais vantagens. Ou seja, as desigualdades são justificadas e ampliadas, gerando sociedades agressivamente competitivas, com grandes diferenças de renda e riqueza.

Esse modelo vai na contramão daquele que defendemos. A educação não pode ser transformada em produto, tampouco nossas escolas podem ser transformadas em fábricas. A educação é, antes de tudo, um direito. Sua qualidade não está relacionada a uma idéia de produção quantitativa, e por17 tanto não podemos confundi-la com o atendimento de padrões e estatísticas.

A formação de nossos jovens é algo muito mais complexo, exigente e dialético e a análise da qualidade da educação deve levar em conta seu papel social e que transformações sociais queremos.

É fundamental, assim, avançarmos na melhoria das condições de trabalho e de formação dos profissionais da educação. Falamos aqui de uma real valorização destes profissionais, materializada na estruturação das carreiras; na garantia de salários dignos; de jornadas compatíveis com a necessidade de tempo para pesquisa, estudo e planejamento do trabalho; no acesso a programas de formação continuada e aperfeiçoamento; na garantia de um número adequado de alunos por turmas; na adequação e estruturação física dos espaços de trabalho; e na autonomia didático-pedagógica. Também é fundamental que se estabeleça, de fato, a gestão democrática das escolas, com Conselhos escolares autônomos, com poder para formular e implementar projetos político-pedagógicos. (Ver artigo de Professor Cardozo neste blog que fala mais sobre o tema).

Por fim, a educação pública só será prioridade se materializada num consistente financiamento, atendendo pelo menos aos objetivos que foram traçados há dez anos pelo Plano Nacional de Educação – Proposta da Sociedade, de termos 10% do Produto Interno Bruto destinado à educação.




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Jeorge Luiz Cardozo – Professor da Faculdade Dom Luiz, Graduado em Filosofia (UCSAL/2000), Especialista em Educação (UNEB/2003) e Assessor Técnico da Secretaria Municipal de Educação de Salvador.

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