-Na política, mesmo os
crentes precisam ser ateus
O momento do Brasil, culminando com as manifestações de 13 de março,
mostra os riscos de uma adesão pela fé: é preciso resistir pela razão
Não se constrói um
projeto político com crentes. Mas a angústia, no Brasil de hoje, se
dá também pela vontade de acreditar que algo é verdadeiro num cotidiano marcado
por falsificações. O perigo é que, quando o roteiro dos dias parece ter sido
escrito por marqueteiros, não cabe razão nesse acreditar. Exige-se fé. Quando a
política demanda adesão pela fé, é preciso ter muito cuidado. Os partidos que
estão aí, puxando para um ou outro credo, podem acreditar que lhes é favorável
ter uma população de crentes legitimando seus projetos de poder. Mas a
adoração, rapidamente, pode se deslocar para outro lugar, como alguns já devem
ter começado a perceber depois das manifestações
do domingo, 13 de março. Ou pior, para um ídolo de barro qualquer.
Rebaixar a política nunca é uma boa ideia para o futuro. Quem acha que controla
crentes, com suas espirais de amor e de ódio, não aprendeu com a história nem
entende o demasiado humano das massas que gritam.
Há uma enorme descrença nos políticos e nos partidos tradicionais, este
já é um lugar comum. Mas é importante perceber que a esta descrença se
contrapõe não mais razão, mas uma vontade feroz de crença. Quando os dias, as
vozes e as imagens soam falsas, e a isso ainda se soma um cotidiano corroído,
há que se agarrar em algo. Quando se elege um culpado, um que simboliza todo o
mal, também
se elege um salvador, um que simboliza todo o bem. A adesão pela fé manifeste-se ela pelo
ódio ou pelo amor, elimina complexidade e nuances, reduz tudo a uma luta do bem
contra o mal. E isso, que me parece ser o que o Brasil vive hoje, pode ser
perigoso. Não só para uma ditadura, como é o medo de alguns, mas para que se
instale uma democracia de fachada, como já vivemos em alguns aspectos.
Uma democracia demanda cidadãos
autônomos, adultos emancipados, capazes de se responsabilizar pelas suas
escolhas e se mover pela razão. O que se vê hoje é uma vontade de destruição
que atravessa a sociedade e assinala mesmo pequenos atos do cotidiano. O
linchamento, que marca a história do país e a perpassa, é um ato de fé. Não
passa pela lei nem pela razão. Ao contrário, elimina-as, ao substituí-las pelo
ódio. É o ódio que justifica a destruição daquele que naquele momento encarna o
mal. Isso está sendo exercido no Brasil atual não apenas na guerra das redes
sociais, mas de formas bem mais sofisticadas. Isso tem sido estimulado. Quem
acha que controla linchadores, não sabe nada.
Talvez o mais importante, neste
momento tão delicado, seja resistir. Resistir a aderir pela fé ao que pertence
ao mundo da política. Fincar-se na razão, no pensamento, no conhecimento que se
revela pelo exercício persistente da dúvida. É mais difícil, é mais lento, é
menos certo e sem garantias. Mas é o que pode permitir a construção de um
projeto para o Brasil que não seja o da destruição. Quem sofre primeiro e sofre
mais com a dissolução em curso são os mais pobres e os mais frágeis. É preciso
resistir também como um imperativo ético.
Na política, mesmo os crentes
precisam ser ateus.
Mas nunca, desde a redemocratização,
pelo menos, foi tão difícil vencer esse paradoxo: à enorme descrença se
contrapõe uma enorme vontade de crença. Uma vontade desesperada de fé. E isso
vale para todos os lados.
***
Seria bom se a
gente pudesse acreditar que as centenas de milhares que foram às ruas neste
domingo querem o fim da corrupção no Brasil. A beleza de um país unido contra
aquilo que o arrasta para o esgoto é uma imagem forte, poderosa. Mas a massa
verde-amarela, vista de perto, delata a si mesma. Quem quer o fim da corrupção
no Brasil não levanta
bonecos de Lula (PT) e de Dilma (PT) e esquece todos os outros que
não pertencem ao partido que quer arrancar do Governo. Quem quer o fim da
corrupção no Brasil jamais teria negociado comEduardo Cunha (PMDB), como lideranças
que organizaram as manifestações negociaram há pouco tempo atrás. Nem usa
camiseta da CBF,
mais corrupta impossível. Nem tira selfies com uma
polícia que sistematicamente viola a lei.
A corrupção é uma bandeira
conveniente para quem nada quer mudar mas precisa fazer de conta que quer. Ela
sempre cabe, porque, ao mesmo tempo que é consenso – ou alguém vai se declarar
a favor da corrupção? –, é difusa. Elege-se os corruptos a destruir, que viram
bonecos, rostos a ser eliminados. E nada se muda da estrutura que provoca as
desigualdades e permite a corrupção de fundo. É interessante perceber, quando
não se adere pela fé, que os alvos nas ruas são os políticos – majoritariamente
Lula e Dilma, contra quem até agora nada foi ainda provado. Há indícios, há
delações, há investigações em curso. Mas nada ainda foi provado. Mas o que
importam os fatos quando o que vale é a propaganda? O que importa a verdade
quando a demanda é por crença?
O rosto dos
corruptos nas ruas, aqueles que simbolizam a corrupção que se diz combater, é o
rosto de governantes, um ex-presidente e sua sucessora. É um único partido,
quando há vários outros envolvidos. Os alvos nas ruas são aqueles identificados
com o Estado. Não há bonecos de expoentes do empresariado nacional, alguns
deles já presos, julgados e condenados. As entidades de classe empresarial que
conclamaram seus associados à adesão aos protestos deste domingo não bradaram
contra seus pares na prisão. A cara do Mercado, a outra face dessa história,
não está as ruas como ré, apesar de também ser protagonista do esquema que está
sendo desvendado pela Operação
Lava Jato.
E por que não está? Para entender um
quadro por completo, tão importante quanto ver quem está é perceber quem não
está.
Não há como afirmar
o que cada um que foi às ruas deseja, qual foi a insatisfação que o levou até
ali. São muitas as paixões – e o espaço público pertence a todas elas. Mas é
importante observar que o senador Aécio
Neves e o governadorGeraldo
Alckmin, dois dos presidenciáveis do PSDB, entraram
na Avenida Paulista alegremente e saíram dela hostilizados, o que talvez lhes
ensine alguma coisa. Quem foi ovacionado aos gritos de “Mito! Mito! Mito!”, ao
participar da manifestação em Brasília, foi
o deputado federal Jair Bolsonaro (PSC), expoente nacional da direita
caricata, que odeia gays e adora armas. E, acima de todos, como ícone positivo
e salvador da Pátria, a figura onipresente do juiz
Sérgio Moro, em cartazes e camisetas. A mais notória delas em inglês: “In
Moro we trust” (Em Moro, nós confiamos). Ela parodia o lema dos Estados Unidos
estampado nas notas do dólar: “In
God we trust” (Em Deus, nós confiamos).
É importante
escutar o discurso dos líderes dos movimentos que organizaram os protestos,
assim como perceber com que partidos se aliam em suas
aspirações políticas. A parte final do artigo escrito pelo coordenador do MBL (Movimento
Brasil Livre) e colunista da Folha de S. Paulo,
Kim Kataguiri, é particularmente reveladora, ao fazer uma analogia entre o momento
atual e a série de TV Power Rangers, para conclamar os
brasileiros a comparecer à manifestação: “Com seis anos, eu lutava contra
monstros que eram derrotados e voltavam gigantes. Lula, depois de ter sido
derrotado no mensalão, voltou ainda maior no petrolão. Os Rangers uniam-se e
fundiam seus veículos para compor o robô gigante. Precisamos de algumas
centenas de milhares de brasileiros para montar o nosso”. Deve acreditar ter
conseguido “montar” seu “robô gigante” nos protestos de domingo.
Escutando as lideranças dos protestos
pelo impeachment da presidente com atenção é fácil perceber que este novo é
velho. Tão velho quanto a rasteira luta do bem contra o mal.
Seria bom acreditar que a massa
verde-amarela nas ruas quisesse de fato o fim da corrupção no Brasil. Pela
razão, não é possível acreditar. Pela crença, sim.
Seria bom se a
gente pudesse acreditar que a oposição ao Governo e ao PT tivesse um projeto
para o país que não fosse apenas um projeto de ocupação e loteamento do poder.
Ou de manutenção do poder, caso do PMDB, partido que hoje comanda seis
ministérios e a vice-presidência da República. É preciso muita fé para
acreditar nisso depois do jantar de 9 de março entre líderes do PSDB e do
PMDB, em Brasília. Entre eles Aécio Neves e José Serra, dois dos
presidenciáveis do PSDB, reunidos com, entre outros, o peemedebista Renan
Calheiros, presidente do Senado e alvo de seis inquéritos na Lava Jato. Na
semana passada, a abertura de um sétimo inquérito foi pedida ao Supremo
Tribunal Federal.
Presidenciáveis do
PSDB negociando com Renan Calheiros, aquele que apenas horas antes havia
entregue a Lula um exemplar da Constituição, testando até que ponto se pode
manipular as imagens, aprofundar o escárnio e debochar da lei. PMDB e PSDB,
juntos, debatendo sobre a partilha do poder depois da queda de Dilma
Rousseff e do PT. Ou sobre como dividir os despojos daqueles cuja morte já
decretaram. Jantando o Governo e o PT e apertando as mãos na sobremesa, certos
de que o futuro é deles, como já foi o passado. É só com muita fé para
acreditar que essa imagem de butim seria o melhor para o país. Ou que
representaria o fim da corrupção. No sábado, três dias depois deste jantar e na
véspera das manifestações, o PMDB decidiu dar um “aviso prévio” à
presidente Dilma Rousseff e ao PT, anunciando que deve desembarcar do
Governo para não sair do poder.
Seria fundamental uma oposição forte
e responsável ao Governo. Sempre é para uma democracia funcionar. Mas, entre os
grandes partidos, não se ouviu uma única voz capaz de superar suas paixões
pessoais e liderar com razão e responsabilidade. O que se viu foram mercadores
desonestos, carniceiros. Urubus que, ao acreditar que comem carniça, não
percebem que devoram junto suas próprias garras.
Seria bom se a
gente pudesse acreditar que o juiz Sérgio Moro tivesse de fato convicção que a
“condução coercitiva” de Lula não só
cumpria os requisitos da lei como evitaria confrontos, como afirmou em nota
pública. E, mais ainda, que “cuidados foram tomados para preservar, durante a
diligência, a imagem do ex-presidente”. Que tipo de candura seria necessária a
Moro e também aos procuradores do Ministério Público Federal para não imaginarem
que, para o Brasil, o que viraria verdade é que Lula foi preso diante das
câmeras? E que isso, por si só, já julgaria e condenaria o ex-presidente sem
julgamento nem condenação? Que tipo de inocência seria necessária a Moro e a
seus pares para não perceber que “condução coercitiva”, termo que não faz parte
do vocabulário da população nem é de fácil apreensão, seria sinônimo de prisão?
E que o espetáculo, com forte aparato policial, como se Lula fosse o próprio Al
Capone, seria decodificado como a prisão de Lula? Espetáculo, é importante
sublinhar, para o qual uma parte da imprensa foi convidada para garantir a
produção e a difusão da imagem de forte poder simbólico.
É preciso que estes homens da lei (?)
sejam ingênuos, o que também não é uma boa característica para a profissão. Ou,
o que é mais fácil de mobilizar, como se viu: é preciso de fé. Da nossa fé.
O que aconteceu naquela sexta-feira
feira, 4 de março, em que Lula foi tirado de casa por policiais federais e
levado para o Aeroporto de Congonhas, foi grave. Muito grave. O juiz e os
procuradores deveriam ser os primeiros a querer evitar de todos os modos essa
simbologia. A imagem de Lula preso, para o Brasil inteiro, não mostra que a lei
vale inclusive para ícones populares e ex-presidentes. Mas que a lei também não
vale para ícones populares e ex-presidentes. Que o abuso e a violação de
direitos, cuja maior representação são os milhares de presos sem julgamento
atirados em penitenciárias medievais, assim como os negros humilhados pelas
polícias nas periferias, são a regra para todos – ou quase todos.
O que o juiz e os procuradores
estimularam nesta cena foi a vontade de linchamento. Porque levar alguém para
depor dessa maneira, produzir esse tipo de imagem, também é um tipo de
linchamento. E foram aplaudidos por parte da população por isso, porque
atenderam à sanha, legitimaram a vontade de vingança ao dar-lhe roupagens de
lei. Quando o rito da lei é substituído pela vingança, e essa substituição é
permitida por quem é um agente da lei, é muito grave. É exatamente em períodos
tão delicados da história que a lei precisa ser interpretada de forma mais
conservadora. E seus agentes precisam ter a grandeza de abrir mão das vaidades
pessoais e reprimir as paixões que também os habitam.
Sérgio Moro e os procuradores, assim
como os policiais federais, não são heróis nem vingadores. São funcionários
públicos. E é como funcionários públicos que precisam se comportar se quiserem estar
à altura do cargo. Deles só se espera que façam bem – e discretamente – o seu
trabalho.
E o que dizer dos
promotores do Ministério Público de São Paulo, pedindo a prisão de Lula a três
dias da manifestação de domingo? E sem nenhuma justificativa razoável, para
além das confusões “filosóficas” que viraram piada nas redes sociais,
quando, entre
outras bobagens, confundiram Hegel com Engels? Importa
perceber que a manchete, com foto, foi garantida: “MP de São Paulo pede a
prisão de Lula”. E a manchete é mais forte do que os editoriais e as matérias
internas. Qual é a verdade que se fabrica ali, e que tem sido repetida em cada
esquina do país? Lula é culpado.
Mas até ser julgado e condenado, Lula
não é culpado. Ou a lei não vale. E, atenção: se a lei não vale para Lula,
também não vale para você ou eu.
É interessante perceber ainda que os
promotores de São Paulo, chamados publicamente por alguns de “os três patetas”,
obtiveram unanimidade num momento em que a unanimidade parecia impossível. O
pedido de prisão de Lula foi condenado por todos os lados. Mas, pela razão,
vale a pena duvidar um pouco dessa unanimidade. O estrago de um pedido de
prisão nas manchetes já estava feito, o serviço já tinha sido cumprido. Talvez
seja apenas esperteza condenar os agentes menos importantes. Não apenas para
dar aparência de isenção, mas principalmente para salvar a imagem dos que
realmente importam, que são os agentes da Lava Jato. Este pode ser um daqueles
casos em que aqueles que se julgavam espertos, ao aproveitar o momento nacional
em busca de glória, encontraram espertos ainda mais espertos. De imediato, “os
três patetas” viraram bois de piranha nas redes sociais. E como sangraram.
Quando a justiça invade o espaço da
política – e a política demanda adesão pela crença, em vez de pela razão, o
risco é grande. O que aqueles que demandam fé não percebem é que o risco é
grande para todos.
Seria bom acreditar que Lula, que
personificou o principal projeto da esquerda na redemocratização do país, que
de fato encarnou uma mudança histórica no Brasil ao ser o primeiro operário a
se tornar presidente, é apenas um perseguido. Seria tudo mais fácil se assim
fosse. Mas só com fé. Pela razão não dá.
Acossado, Lula fez o que melhor sabe
fazer, aquilo que o tornou um dos presidentes mais populares da história. Lula
foi Lula, o Lula que fala a linguagem do povo porque compreende o povo como
poucos. E, por um momento, a maioria dos que um dia acreditaram, porque havia o
que acreditar, foram tentados, fortemente tentados, a voltar a acreditar.
Porque é tão mais fácil acreditar. Mas a estranheza, a estranheza que vem pelo
pensamento, foi se imiscuindo. Mesmo quando empurrada para baixo, ela teima em
subir à superfície. E, aos poucos, torna-se claro: Lula estava encenando Lula.
Ou melhor: o Lula atual estava
encenando o Lula de antes. Porque o Lula de antes já não existe, nem poderia,
já que qualquer pessoa é mudada pelas suas experiências. E Lula, mais do que a
maioria, circulou por muitos mundos novos desde que se tornou presidente, e
mesmo antes. Assim, o discurso virou farsa. Não fraude, mas farsa. E mesmo o
que havia de verdade, porque obviamente ainda existe o Lula no Lula, revelou-se
como falseamento quando visto pelas lentes da razão, do pensamento que alcança
o conhecimento pela via da dúvida.
É um fato que o governo de Lula incluiu
dezenas de milhões de brasileiros e melhorou a vida de todos. É um fato que a
miséria e a fome diminuíram significativamente no seu governo. É um fato que o
Brasil mudou – e mudou para melhor com Lula. E isso não é pouco, mas não é
mesmo. Isso é enorme.
O “nunca antes neste país”, usado por
ele e satirizado pelos adversários, é um fato em vários setores. Mas não é por
isso que ele está sendo investigado. Mas sim pelo que também pode ter de fato
feito. Pelo que há indícios de que tenha feito. Assim como outros membros do PT
já foram julgados, condenados e presos pelo que de fato fizeram. Isso não é
perseguição, isso é justiça. Buscar confundir, deliberadamente, uma coisa com
outra, demanda fé. E má fé.
Para acreditar no discurso de Lula é
preciso crer como um crente. E não é de hoje que Lula exorta seus eleitores a
esse tipo de crença. Lula como presidente cultivou uma mística, a mística do
pai. E, assim, reduziu eleitores a filhos – em vez de cidadãos. Em vez de
estimular emancipação e autonomia, demandou obediência. Em vez de mostrar que
políticas públicas são direitos, apresentou-as como bondades. Filhos que adoram
não perdoam fraturas na imagem do pai. A paixão, que é um tipo de fé, em
determinadas condições vira ódio. Lula arriscou-se quando se permitiu ser
adorado – e gozar com isso. Assim como não se controla linchadores, também não
se controla adoradores.
Hoje Lula é linchado simbolicamente
por muitos que o veneravam, inclusive por parte daqueles que melhoraram sua
vida radicalmente durante o seu Governo. Para estes, ele era um objeto antes,
segue sendo um objeto agora. Apenas que antes movia paixão, e agora ódio.
Lula, que
compreendeu o Brasil e os brasileiros como poucos, em qualquer tempo, perdeu um
capítulo. E não qualquer capítulo, mas um fundamental: Lula ainda não
compreendeu as manifestações
de junho de 2013.
Ao lançar Dilma
Rousseff como sua sucessora, Lula já tinha sido tomado por um delírio de
onipotência, já era ele mesmo um crente de si mesmo. E poucas coisas são mais
perigosas para uma pessoa pública do que isso. Ao partido, só cabia obedecer.
Lula elegeu Dilma e a reelegeu, mas a que preço. Também tentou lançá-la como a
“mãe dos pobres” e a “mãe do PAC”. Mas Dilma jamais teve essa vocação. Entre
todas as mentiras apresentadas como verdades nessa realidade em que um Eduardo
Cunha é o presidente da Câmara e um Renan Calheiros é presidente do
Senado e um Michel Temer é vice-presidente do país, talvez seja Dilma
justamente quem traga um pouco de honestidade pessoal ao enredo. É ela, a tão
claramente atrapalhada, a tão claramente incompetente, a tão claramente
irascível, que acaba, involuntariamente, revelando-se em atos falhos sem fim.
Como no mais recente, em que negou que estivesse cogitando uma renúncia
dizendo: “Eu me renuncio...”.
***
Quando o cenário desmorona e a vida é
corroída no cotidiano, a vontade de acreditar aumenta. Quanto maior o
falseamento e mais frágeis as verdades, maior a vontade de crença. Entre as
crenças que talvez uma parte da esquerda esteja tentada a embarcar está a de
que este é um momento de estar em um lado ou em outro lado. Havia pelo menos
uma condição que na ditadura era mais fácil, a de que ou se estava contra ela
ou a favor. Era muito fácil saber quem eram os inimigos – e os que não eram
inimigos eram amigos. A democracia complica as coisas ao aumentar as nuances.
Apesar de muito mais difícil, é bem melhor que as coisas sejam vistas como de fato
são: complexas. Nostalgias do preto e branco podem ser perigosas, mais ainda
num cérebro com vontade de crença.
Posso estar
equivocada, errar é um risco de quem se arrisca a pensar. Mas recuso – e recuso
pelo pensamento – a polarização. Há muitos, nos quais me incluo, que não estão
nem cá nem lá. E, ao contrário do que dizem uns e outros, também não estão em
cima do muro. Há posição e há posicionamento forte para além da polarização. Já
afirmei, mais de uma vez neste espaço, que, no meu modo
de ver, a alegada polarização é mais uma falsificação entre tantas neste
momento conturbado do país. O problema de Lula e do PT é muito mais quem não
está nas ruas contra eles, mas também já não estaria a favor. Este recusar um
lado e outro é ativo, é posição.
Repudio o que Sérgio Moro e seus
pares fizeram com Lula não por ele ser ex-presidente, mas porque sempre
denunciei o abuso de policiais e de outros agentes da lei como prática de sua
atuação junto às populações mais pobres e desamparadas das periferias, do campo
e da floresta. Incluindo nesta denúncia todas as prisões ilegais feitas nos
protestos de 2013 pela tarifa zero, nos de 2014 contra as remoções promovidas
em nome da Copa do Mundo e nos de 2015 contra a “reorganização escolar” feita
por Geraldo Alckmin. Reconheço o que os governos Lula-Dilma fizeram no combate
à miséria e na ascensão social de milhões. Assim como reconheço seu
protagonismo no tema das cotas raciais e na ampliação do acesso à universidade,
entre outros temas de fundamental relevância.
Mas repudio a violação
escandalosa de direitos em grandes obras na Amazônia, como Belo Monte.
Se o esquema de corrupção revelado nas delações da Lava Jato for comprovado, é
apenas uma das pontas. A
violência promovida pela Norte Energia e pelo Governo federal, duas esferas que
seguidamente se misturavam, é bem documentada há anos. Assim como repudio o
desrespeito aos direitos indígenas e o sumiço da reforma agrária da pauta.
Lamento a falta de
investimento em saneamento básico, uma das principais razões da expansão
do Aedes aegypti e sua coleção
de doenças. Assim como o investimento insuficiente em educação, principal
instrumento da emancipação de um povo, para muito além do acesso a bens de
consumo. Também lamento uma visão medíocre de cidade e de cidadania. E abomino
a cegueira socioambiental deste Governo, mais criminosa ainda por vivermos em
tempos de mudança climática.
Quando Lula e o PT
reclamam dos abusos de Sérgio Moro, dos procuradores e da Polícia Federal, têm
razão em alguns casos, como o da “condução
coercitiva”. Mas a razão que têm não faz desaparecer o fato de que este Governo
colocou a Força Nacional a serviço da Norte Energia – e das empreiteiras – na
ocupação do canteiro de Belo Monte por indígenas, ribeirinhos e movimentos
sociais de Altamira, no Xingu, assim como na repressão aos Munduruku, que
protestavam contra a construção de hidrelétricas no rio Tapajós. Nem faz
desaparecer o quanto este Governo compactuou com a repressão e a prisão de
manifestantes na Copa do Mundo de 2014. Muito menos faz desaparecer a
abominação da lei
antiterrorismo, de iniciativa deste Governo, que está na mesa de Dilma Rousseff para
ser sancionada.
Aponto as
contradições dos governos Lula-Dilma desde muito antes de a The
Economist publicar uma capa do Cristo Redentor decolando como um foguete (e
depois outra com o mesmo Cristo afundando após um voo curto). Ou de a Newsweek chamar a presidente de “Dilma Dinamite”, avisando: “Não
mexa com Dilma”. Já criticava Dilma Rousseff quando setores que hoje a lincham
a exaltavam. Concordo com oantropólogo Eduardo Viveiros de Castro
quando ele diz que “Dilma é um fóssil”. Minha avaliação é de que ela tem
uma cabeça cimentada no século 20 e não consegue compreender nenhum dos grandes
debates que vieram depois. Considero Dilma Rousseff um desastre pela sua miopia
sobre os grandes temas do Brasil e do mundo.
Ainda assim, enquanto não houver
provas de que a presidente cometeu ilegalidades, não me parece possível apoiar
seu impeachment. Respeito o voto da maioria, mesmo quando não concordo com ele.
Ser cidadão é ser adulto – e ser adulto é responsabilizar-se pelo seu voto e
lutar pelo respeito ao voto do outro. Se as provas aparecerem, e só assim, esse
processo pode ganhar legitimidade e então apoio.
Jamais estaria ao lado dos que
promoveram as manifestações de 13 de março. Conheço esses protagonistas de
outras décadas. O figurino de novidade não cobre o mofo de quem sempre esteve
no mesmo lugar. O que representam nunca saiu do poder no Brasil. E, quando escutados
com atenção, é possível ouvir o som de fundo: tudo o que querem é manter seus
privilégios intactos. Não será com a minha fé.
Setores do PT
traíram um projeto que não pertencia apenas a eles, mas a pelo menos duas
gerações de esquerda. É preciso construir outro, por outros caminhos, que passa
por tudo o que se aprendeu com 2013. Neste momento histórico, o que sabemos
fazer já não é suficiente. É preciso encontrar uma outra forma de fazer. Tudo o
que importa está paralisado por essa falsa polarização. É preciso se mover e
fazer o que importa. No cotidiano, dia após dia. Esta não pode se tornar uma
democracia de fachada. Como
já escrevi, não porque temos esperança. Neste momento histórico, a
esperança é um luxo, um supérfluo. É preciso fazer por imperativo ético.
Diante da necessidade de se construir
um novo projeto para o país, me parece necessário resistir à vontade de crença.
Prefiro ser ateísta também na política.
Eliane
Brum é escritora, repórter e documentarista. Autora dos livros de não
ficção Coluna Prestes - o Avesso da Lenda, A
Vida Que Ninguém vê, O Olho da Rua, A Menina Quebrada, Meus Desacontecimentos, e do
romance Uma Duas. Site: desacontecimentos.com Email:elianebrum.coluna@gmail.com Twitter: @brumelianebrum
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