O Estado, o Poder e o Socialismo: Nicos Poulantzas e o tempo fora do eixo.
Por:Jeorge Luiz Cardozo*
No O 18 Brumário de Luís Bonaparte Marx lembra; de modo bastante direto, o empenho de Hegel em predizer um caráter insistente da história, o que significa dizer que por alguma razão, pode-se afirmar que a história se repete. Não se trata de pressuposição nova na história da filosofia, cada filósofo a sua maneira, Platão já havia dito algo parecido e Aristóteles não parecia discordar muito da idéia, desde que em suas bases. Contudo, o humor para afirmar essa possibilidade cíclica da história é uma inovação da Marx. O fato é que para ele a história se repete. Não como um velho senhor que sempre conta o mesmíssimo “causo” para seu jovem neto, mas a maneira de um velho senhor que, ao contar os mesmos “causos” para seu jovem neto, cria alterações fundamentais em suas narrativas, para testar a memória do neto e sua perspicácia.
A história brinca com os homens, contudo não há ninguém para brincar, nem do lado da história, que não é animada por nenhum princípio ordenador, nem do lado dos homens, pois não acham graça nas estripulias da história. Mas a velha ironia de Marx permite que dê a Hegel, ao comentar sua filosofia da história, um pequeno complemento. Afirma que a história realmente possui um caráter repetitivo. Mas na primeira vez se repete como tragédia e a na segunda se repete como farsa. Em um primeiro momento chega muito cedo e no segundo já muito tarde. A revolução chega quando os homens não estão preparados ou quando não mais precisam dela. Depois Marx comenta que os homens fazem à história, mas não a fazem como querem, Adam Ferguson diz bastante melhor, a história é fruto da ação dos homens, mas não de seu desígnio. Para unir todos os componentes destes primeiros parágrafos em uma única expressão: digamos que os homens fazem a história, pois não poderiam deixar de fazê-la, mas não sabem para onde vão, nem possuem como sabê-lo, mas não podem deixar de ir, neste ato atrapalhado podem chegar de dois modos, ou muito cedo, ou muito tarde; e o desencontro ontológico de nossa ação no mundo, deverá ser repetido, indefinidas vezes, tal como o banqueteamento dos abutres com as tripas de Prometeu.
Derrida nunca foi um grande leitor de Marx, mas possui um livro com o nome Espectros de Marx. Aproveitando suas afinidades para com Shakespeare, deixa de lado a leitura de Marx para ler Shakespeare de uma vez, ou melhor, lê Marx pelos olhos de uma leitura de Shakespeare, mais ou menos como a recomendação de Harold Bloom de que o melhor Freud é a aquele lido pelos olhos do leitor de Shakespeare. Sua leitura de Shakespeare faz com que encontre uma frase que descreve o espírito sempre intempestivo de Marx. The time is out of joint. Ou ainda é muito cedo ou já é muito tarde. O tempo está sempre fora de seu eixo. O tempo é fora do eixo.
Em O Estado, o poder e o socialismo Nicos Poulantzas inaugura seu argumento invocando uma relação de fato que o incita a sua atividade teórica, qual seja, “à situação política da Europa”. Com efeito, por essa expressão devemos entender que a atividade teórica de Poulantzas responde às demasiadas críticas de que o marxismo não seria capaz de lidar com o fracasso político do leste do velho continente. Assim, reponde-se à acusação de que o marxismo não é um modelo teórico aceitável, através de um novo modelo teórico marxista. A motivação de Poulantzas é a história recente que tem diante de si, história essa que acusa o marxismo de insuficiência teórica, resposta: o marxismo sim é um modelo teórico aceitável, desde que percebamos que a teoria possui desvios não acompanháveis pela prática. Ao desvincular a relação entre teoria e prática, motivada por uma razão histórica, funda uma nova maneira de ver antigos fenômenos, por uma nova feição teórica do marxismo.
Impossível não pesarmos que “o tempo está fora dos eixos”, pois as narrativas teóricas do marxismo sempre necessitaram de um mundo cujas relações econômicas permitam certo conflitos de classes, não que haja relações econômicas sem conflito, mas nem toda conflitiva permite a reação, mas por algum motivo certa linha narrativa do mundo da vida passou a identificar o discurso marxista como a imagem teórica de uma determinada decadência.
O tempo está fora dos eixos – pois o discurso poderia ser recolocado sobre novas bases – mas por algum motivo a recuperação desta linha discursiva cansa aos ouvidos, pois se sente que o tempo passou. Poulantzas é genial – contudo é intempestivo – fora do tempo como apenas os grandes pensadores conseguem ser – suas filiações o lançam para fora do tempo, talvez uma nova teoria, talvez novos conceitos, mas Poulantzas opta pelos antigos, não qualquer antigo, mas o mesmo antigo, entretanto, radicalmente novo. Intempestivo porque insiste em tratar dos velhos grandes temas da política, sob a veste do argumento de que não há sobre o que falar, senão dos grandes temas da política. O Estado é um deles, relações de exploração, outro, ideologia, mais um, e sim, o velho glossário do pensamento marxista volta às nossas cordas vocais, contudo ainda que possamos indicar indiscutíveis homofonias, trata-se aqui de um novo conceito. Novos papéis para velhos temas da política. Vejamos um trecho que bem indica a idéia que enunciamos, depois comentemos:
“... o Estado apresenta uma ossatura material própria que não pode de maneira alguma ser reduzida à simples dominação política. O aparelho de Estado, essa coisa de especial e por conseqüência temível, não se esgota no poder do Estado. Mas a dominação política está ela própria inscrita na materialidade institucional do Estado. Se o Estado não é integralmente produzido pelas classes dominantes, não o é também por elas monopolizado: o poder do Estado (o da burguesia no caso do Estado capitalista) está inscrito nesta materialidade. Nem todas as ações do Estado se reduzem à dominação política, mas nem por isso são constitutivamente menos marcadas”.
O que nos leva a crer que o Estado, o poder e a relação de dominação exercida pela classe dominante através do Estado continuam sob uma mesma estrutura conceitual, contudo o teórico deve atentar que o Estado possui formação heterogênea, de modo que para além da dominação, existe o exercício da dominação e a recepção da dominação pelos dominados – tal dialética é importante, inclusive, para a delimitação dos elementos constitutivos do Estado. A dominação política não é a única dominação exercida pelo Estado, talvez pudéssemos dizer que ser dominado pela política não é a única forma de exercício de poder ou de limitação de liberdade através do Estado, de modo que dominar pela política, igualmente, constitui um modo de ser dominado pela política. Não é possível abandonar o processo de dominação impunemente. Poulantzas indica percebê-lo, mas não sem uma boa dose de moralidade ao estilo marxista. Com efeito, devemos perceber que utilizamos o vocábulo moralidade e não o preconceituoso moralismo. Em certa acepção nossa afirmativa é bastante redundante, mas o faz de maneira necessária, pois entendemos que não existe atitude teórica que não envolva uma percepção moral. Não importando a natureza filosófica do argumento, se falamos sobre relações intersubjetivas, falamos, também, de moralidade. Ainda que não haja uma teoria moral marxista, devemos apontar que existem elementos que nos levam a perceber uma estrutura discursiva própria ao modo de elaborar teorias do marxismo, como por exemplo, a descrição da exploração como sendo negativa (não que discordemos desse fato). Contudo o marxismo permite um paradoxo interessante: é possível utilizar as categorias filosóficas do marxismo, possuindo como pano de fundo, outra teoria moral que não o marxismo, isso é possível porque o marxismo realiza exaustiva descrição do capitalismo, mas podemos ler o capitalismo sem tê-lo como essencialmente pernicioso para a natureza humana. Poulantzas assim não faz: seu comprometimento com o marxismo envolve adesão aos princípios morais do marxismo. Mais uma vez insiste na boa intempestividade.
A intempestividade adotada por Poulantzas talvez não seja a melhor, mas é ortodoxamente marxista, gostaríamos de indicar que a apropriação do marxismo, enquanto teoria econômica que compreende uma parcela do capitalismo, em outras bases morais, talvez evidenciasse um interessante (re) nascimento de antigos instrumentos conceituais. Assim, queremos salientar que ainda resta em Poulantzas apropriação excessivamente moral (no sentido da moral marxista) para avaliar os termos econômicos do capitalismo.
Poulantzas percebe que muitos indicam que o marxismo possui excelentes categorias de análise do capitalismo, mas que não possui uma acertada teoria geral do Estado. Contudo, não podemos deixar de afirmar que a teoria econômica marxista, apesar de irrefutável em muitos pontos, possui conteúdo cruelmente histórico, de modo que, se atentarmos bem, inclusive os axiomas mais assertivos são relativizados em função das novas instituições políticas. Inclusive os elementos mais reconhecidos do marxismo deverão sofrer se desejarem a permanência enquanto conceito, modificações estruturais. No que diz respeito a uma teoria geral do Estado é absolutamente conhecido que o marxismo não dispõe de uma, Poulantzas observa que o marxismo não possui uma teoria geral do Estado porque não pode possuir uma teoria geral das formações do Estado. Seria uma contradição para Poulantzas à existência de uma teoria geral do Estado em um procedimento teórico que se pretende revelador das relações materiais envolvidas nos processos de produção e os modos de influência desses na luta de classes. Vejamos como defende sua posição:
“... não existe teoria geral do Estado, pois não poderia haver. Nesse ponto, é preciso ser rígido com as críticas, de boa ou de má fé, que recriminam as pretensas carências do marxismo ao nível de uma teoria geral do político e do poder. Um dos méritos do marxismo é justamente o de ter afastado, neste caso como em outros, os grandes devaneios metafísicos da filosofia política, as vagas e nebulosas teorizações gerais e abstratas que pretendem revelar os grandes segredos da História, do Político, do Estado e do Poder".
O argumento resta bastante claro, contudo ao nos confrontarmos com algumas teses apresentadas pelo autor somos constrangidos com algumas aparentes contradições. Parece evidente que uma teoria que se pretende opositora dos arroubos metafísicos da tradição possuirá desconforto com a enunciação da possibilidade de uma teoria geral, mas quando enunciamos que a separação entre teoria e prática é um ponto forte de nossa capacidade formuladora, parece que cometemos o mesmo engano que objetivávamos evitar. Não se trata de nenhum paradoxo performativo, mas de uma contradição, dessa vez podemos dizer que não tão somente aparente, porque, independentemente do que motive a assertiva, a separação entre teoria e prática é o que possibilita a estrutura lógica dos argumentos hipotéticos. Para Poulantzas, parte da conveniência do marxismo advém do fato de que esse não é hipotético, mas profundamente responsivo aos problemas da “história das lutas de classe dentro do capitalismo”.
Não cabe aqui discutir o grau de responsabilidade do marxismo frente aos desastres do stalinismo e dos regimes do leste europeu, primeiro porque não é clara a possibilidade de se aplicar um conceito como o de responsabilidade a fenômenos que não sejam perfeitamente previsíveis, como a ação de homens em determinadas condições, segundo porque ainda que pudéssemos aplicar a noção de responsabilidade em situações não tão previsíveis, não estaria certo que coletividades pudessem ser imputadas e terceiro porque jamais poderíamos imputar o conceito de responsabilidade ao filósofo, pois sua influência pouco ou nada depende de sua atividade (ainda para casos muitos extremos como o de um Sartre).
Em pequeno axioma pensamos ser correto dizer que a influência dos filósofos, ou a influência das idéias na vida prática é sempre muito menor do que pretende o filósofo e sempre muito maior do que pretende o historiador. Para a intempestividade: muito menor do que esperamos e muito maior do que imaginamos. Contudo, os malabarismos que Poulantzas utiliza para absolver o marxismo são completamente absurdos, assim como suas analogias. É uma defesa verdadeiramente ruim de o marxismo afirmar que a ligação do marxismo ao regime de Stalin e as desventuras do leste é comparável à ligação entre Rousseau e os totalitarismos ou entre Jesus e as ditaduras ibéricas. Todas as comparações são absurdas, ainda que a ligação entre Stalin e as idéias de Marx – principalmente se pensarmos no Manifesto do Partido Comunista – seja muito mais factual do que entre Jesus e Franco.
Se “[s]empre existe uma distância estrutural entre teoria e a prática, entre teoria e o real” essa distância não pode ser invocada para quebrar as possíveis responsabilizações e não ser invocada para justificar a ausência de uma teoria geral do Estado. O argumento da impossibilidade de uma teoria geral é bastante coerente, contudo essa linha narrativa estabelece vinculação necessária entre teoria e prática. Não podemos jogar fora o fato de que o marxismo é uma estrutura teórica eminentemente prática. Com intensidade tal que a separação entre teoria e práxis chega a não fazer sentido. De modo que em largas linhas concordamos com as conclusões alcançadas por Poulantzas, mas não concordamos com a escada que usou para subir nesse telhado.
Estado e ideologia ou crenças?
A implicância de Poulantzas com aqueles que se vale de Marx de modo não ortodoxo é bastante significativa, cremos que poderia dialogar com mais generosidade se levasse um pouco mais a sério os seus aparentes oponentes enquanto intérpretes do marxismo. Os principais “detratores” do “verdadeiro” marxismo para Poulantzas são Foucault e Deleuze. Dialogar a partir de Foucault e Deleuze contra Poulantzas seria uma covardia, porque contamos com uma visão geral da obra dos autores malditos, com a qual Poulantzas não podia contar. Assim, ao invés de refutar Poulantzas através de um místico holismo, buscaremos explicitar sua possível precipitação no julgamento desses autores. Para então examinarmos o papel da ideologia em seu pensamento e confrontarmos o conceito de ideologia com a noção de crença.
Todos sabemos que o Estado é constitutivo das relações econômicas, tanto na sua ação, quanto na sua abstenção, da mesma forma sabemos que as formas contemporâneas do capitalismo agem contra a singularidade, contra a individualidade, contra a inventividade e a favor da individualização, da generalização e da serialização. Poulantzas tanto concorda com essas sentenças que as confirma. Vejamos um trecho de Poulantzas para depois comentarmos no contexto deste parágrafo:
“Não existem classes sociais anteriores à sua contestação, isto é, às suas lutas. As classes sociais não se colocam “em si” nas relações de produção para entrar na luta (classes “para si”) somente depois ou noutro lugar. Situar o Estado em sua ligação com as relações de produção é delinear os contornos primeiros de sua presença na luta de classes”.
O que nos leva a perceber que a noção de classe enquanto conceito que pode ser utilizado como agente de reação contra um determinado estado de coisas demanda, antes de tudo, reação a serialização, à generalização e à individualização. Uma classe é um posto de reação a certas disposições do capitalismo, tão somente quando consegue alguma ação criativa sobre si. Alguma inventividade sobre sua condição. Alguma singularidade sobre sua função. A exposição das relações de produção serve quando aponta para o “marco zero” de onde uma classe deve ser inventada. O capitalismo possui classes ainda que não haja singularidades nessas, mas conta com classes inertes, corpos passivos com relação aos quais pode imprimir as suas marcas. A classe, no sentido marxista, rejeita as marcas externas para fundar suas próprias. Daí a noção de que o marxismo não possui dentro nem fora, mas somente relações exteriores, pois não admite que de fora seja interiorizada uma classe, para a qual regras são ditadas e papéis são estabelecidos. Silenciosamente Poulantzas se aproxima de Foucault e Deleuze. O ato criativo de composição de uma classe é traduzido enquanto condição de possibilidade para a ação política na instituição ou contra a instituição.
Poulantzas é bastante cético quanto à aceitação de uma linguagem tradicionalmente marxista, sem que essa sofra apropriações teóricas mais próximas aos problemas que deseja resolver, contudo, quando critica Deleuze parece sofrer de um preconceito terminológico, não o agrada a pluralidade terminológica, bastar dizer que Poulantzas, inclusive pelo fato de ser marxista, é um cético ruim. A perturbação, ou a taraché para os céticos, do marxismo o leva a reinventar parcelas interessantes da teoria marxista, mas não o levam reinventar a própria teoria, o pensar dentro das arestas conceituais do marxismo faz mal a Poulantzas, de modo que não aceita o padrão dos velhos marxistas, mas não consegue estar confortável em novos mundos.
Um confronto entre dois mundos pode ser encontrado no embate entre as noções de ideologia e de crença. A noção de ideologia é bastante identificada com a história mesma do marxismo, de modo que dependendo do conceito de ideologia, podemos afirmar diante de qual marxismo estamos. O marxismo de Poulantzas também conta com o conceito de ideologia, mas ao invés de estar centrado sobre os tradicionais pólos: encobrimento da realidade e dominação; encontra-se também articulado com a possibilidade dos regimes ideológicos não serem absolutamente homogêneos. A concessão, feita por Poulantzas, a uma releitura do conceito de ideologia passa pela admissão de vias transversas de influência, como quem diz: - Assim como o Estado emana ideologia para a contaminação das classes, também as classes emanam ideologia para a formação do Estado, ou seja, uma via dupla. A crença por outro lado é bastante autônoma da figura do Estado. Pelo conceito de crença entendemos a relação última de causalidade da natureza humana com o espaço e com o tempo, de modo que pelo regime da experiência é dado aos homens esperar alguma coisa do mundo da vida onde estão inseridos. A crença não possui o “conteúdo paranóico” da ideologia (entendemos por conteúdo paranóico o fato de que à ideologia, como encobridora da realidade, sempre é dado corresponder, epistemologicamente, atitude mínima de desvelamento dos processos encobridores), pois entende pela naturalidade das explicações conceituais da realidade. De modo que não existe regime explicativo imposto, mas regimes explicativos aceitados, não segundo algum voluntarismo, mas no processo social mesmo. Assim, o Estado, segundo o conceito de crença, não utiliza a crença para dominar, mas é ele mesmo uma crença. Crença essa que possui regimes próprios para a composição do poder. Por certo que a noção de crença está muito mais próxima de Foucault (episteme) e de Deleuze (aparelhos de captura) do que de Poulantzas. Contudo quando diz que a ideologia “... produz discurso segmentar e fragmentado segundo as diretrizes da estratégia do poder ”, aproxima-se enormemente de uma filosofia das crenças. A noção de estratégia difusa do poder não pode ser interpretada como encobridora, mas como reveladora de um estado de coisas. A política utiliza crenças para a convalidação do exercício do poder. Cabe, portanto, indagar o que é o poder?
Poulantzas entende o poder como a ação de dominação do Estado com relação a uma classe, de modo que, ainda que o Estado sofra muitas influências para a composição de sua ideologia, predominantemente evidencia o exercício da reprodução dos poderes de classe nas relações de produção.
Para Poulantzas, e somente essa idéia é suficiente para colocá-lo no panteão dos grandes pensadores, o poder é exercido sob a forma de violência sobre o corpo. Meios efetivos de manipulação e devoração de corpos; mecanismos de mutilação, de normalização e de ordenação de corpos; agências capazes de fazer morrer, de fazer viver e de deixar morrer são os elementos pelos quais o poder é exercido. Poder possui estreita relação com a força, mas essa possui dimensões das mais variadas, como o terror e o trauma, de maneira que a mera persuasão física é somente uma das peças desse intrincado fenômeno. O exercício do poder sobre o corpo extrapola o regime da biologia e adentra no terreno das instituições, de uma tal forma que Poulantzas chega a dizer que um corpo não é uma unidade personalíssima, mas uma instituição política.
Por certo que Poulantzas localiza o exercício do poder no Estado. As ideologias são modos da ação sobre o corpo. O silogismo final é composto com a união entre Estado e ideologia agindo sobre o corpo, instituição política de um intrincado jogo de aparelhos de dominação. Muitas críticas podem ser feitas a essa precipitada união de idéias empreendida por Poulantzas, mas se deslocarmos o poder do Estado para a imanência da política, enquanto regime de composição e interação de crenças; teremos uma imagem completamente nova da política, uma imagem que não é mais inteiramente marxista, mas que parte de Marx. Para isso temos que nos comprometer com as teses, de Foucault e Deleuze, segundo as quais o poder nunca é centralizado, pois o poder não possui um dentro e um fora, não havendo aqueles que usam o poder e aqueles que sofrem a ação do poder, mas apenas o poder.
A produção de cenários onde a figura do poder é relevante deve ser compreendida sempre dehors. Ao mesmo tempo em que o poder é mobilizado no Estado, a possibilidade do poder já foi permitida em outro momento da vida social. A sociedade exerce poder quando permite o poder, e mesmo em sua subjugação. Paradoxalmente (porque contraria a essência de sua tese) Poulantzas recorda que o poder exercido por Hitler não seria possível sem o poder exercido pelos alemães, assim como o anti-semitismo de Hitler não realizou sozinho o extermínio; do ponto de vista da moralidade existem vítimas e algozes, mas no ponto de vista do poder existe um contínuo exercício de influências. Não existem desinteressados passivos no jogo do poder. A própria servidão é uma ação de passividade. Não é a toa que o Discurso sobre a servidão voluntária de La Boétie seja invocado constantemente pela tradição em filosofia política inaugurada por Pierre Clastres (a afinidade de Deleuze com Clastres é conhecida).
Poulantzas é melhor marxista do que Foucault e Deleuze. Mas o marxismo de Poulantzas não é a única teoria marxista sobre o poder, como não é o único regime teórico sobre as ideologias, da mesma forma como a ideologia não é o único conceito que nos ajuda a compreender o poder. Uma leitura sistemática e complementar entre Poulantzas, Foucault e Deleuze tem muito mais a acrescentar aos debates sobre o marxismo do que parece crer Poulantzas. As análises de Foucault e Deleuze sobre o marxismo acabam por subvertê-lo um pouco, no sentido de que vai contra o “verdadeiro marxismo”, mas ao incluir categorias diminutas como: a definição do poder como sendo composto por microvilosidades de influências, torna sem sentido a pergunta: - Está fora ou dentro do Estado? Não porque responde como Hegel que tudo está dentro do Estado, mas porque afirma que o Estado, como todos os poderes, está diminutamente localizado, de modo que está sempre “fora” das categorias.
Referência:
Poulantzas, Nicos. O Estado, o poder, o socialismo. Tradução Rita Lima. Rio de Janeiro: Edições Graal, 1981.
No O 18 Brumário de Luís Bonaparte Marx lembra; de modo bastante direto, o empenho de Hegel em predizer um caráter insistente da história, o que significa dizer que por alguma razão, pode-se afirmar que a história se repete. Não se trata de pressuposição nova na história da filosofia, cada filósofo a sua maneira, Platão já havia dito algo parecido e Aristóteles não parecia discordar muito da idéia, desde que em suas bases. Contudo, o humor para afirmar essa possibilidade cíclica da história é uma inovação da Marx. O fato é que para ele a história se repete. Não como um velho senhor que sempre conta o mesmíssimo “causo” para seu jovem neto, mas a maneira de um velho senhor que, ao contar os mesmos “causos” para seu jovem neto, cria alterações fundamentais em suas narrativas, para testar a memória do neto e sua perspicácia.
A história brinca com os homens, contudo não há ninguém para brincar, nem do lado da história, que não é animada por nenhum princípio ordenador, nem do lado dos homens, pois não acham graça nas estripulias da história. Mas a velha ironia de Marx permite que dê a Hegel, ao comentar sua filosofia da história, um pequeno complemento. Afirma que a história realmente possui um caráter repetitivo. Mas na primeira vez se repete como tragédia e a na segunda se repete como farsa. Em um primeiro momento chega muito cedo e no segundo já muito tarde. A revolução chega quando os homens não estão preparados ou quando não mais precisam dela. Depois Marx comenta que os homens fazem à história, mas não a fazem como querem, Adam Ferguson diz bastante melhor, a história é fruto da ação dos homens, mas não de seu desígnio. Para unir todos os componentes destes primeiros parágrafos em uma única expressão: digamos que os homens fazem a história, pois não poderiam deixar de fazê-la, mas não sabem para onde vão, nem possuem como sabê-lo, mas não podem deixar de ir, neste ato atrapalhado podem chegar de dois modos, ou muito cedo, ou muito tarde; e o desencontro ontológico de nossa ação no mundo, deverá ser repetido, indefinidas vezes, tal como o banqueteamento dos abutres com as tripas de Prometeu.
Derrida nunca foi um grande leitor de Marx, mas possui um livro com o nome Espectros de Marx. Aproveitando suas afinidades para com Shakespeare, deixa de lado a leitura de Marx para ler Shakespeare de uma vez, ou melhor, lê Marx pelos olhos de uma leitura de Shakespeare, mais ou menos como a recomendação de Harold Bloom de que o melhor Freud é a aquele lido pelos olhos do leitor de Shakespeare. Sua leitura de Shakespeare faz com que encontre uma frase que descreve o espírito sempre intempestivo de Marx. The time is out of joint. Ou ainda é muito cedo ou já é muito tarde. O tempo está sempre fora de seu eixo. O tempo é fora do eixo.
Em O Estado, o poder e o socialismo Nicos Poulantzas inaugura seu argumento invocando uma relação de fato que o incita a sua atividade teórica, qual seja, “à situação política da Europa”. Com efeito, por essa expressão devemos entender que a atividade teórica de Poulantzas responde às demasiadas críticas de que o marxismo não seria capaz de lidar com o fracasso político do leste do velho continente. Assim, reponde-se à acusação de que o marxismo não é um modelo teórico aceitável, através de um novo modelo teórico marxista. A motivação de Poulantzas é a história recente que tem diante de si, história essa que acusa o marxismo de insuficiência teórica, resposta: o marxismo sim é um modelo teórico aceitável, desde que percebamos que a teoria possui desvios não acompanháveis pela prática. Ao desvincular a relação entre teoria e prática, motivada por uma razão histórica, funda uma nova maneira de ver antigos fenômenos, por uma nova feição teórica do marxismo.
Impossível não pesarmos que “o tempo está fora dos eixos”, pois as narrativas teóricas do marxismo sempre necessitaram de um mundo cujas relações econômicas permitam certo conflitos de classes, não que haja relações econômicas sem conflito, mas nem toda conflitiva permite a reação, mas por algum motivo certa linha narrativa do mundo da vida passou a identificar o discurso marxista como a imagem teórica de uma determinada decadência.
O tempo está fora dos eixos – pois o discurso poderia ser recolocado sobre novas bases – mas por algum motivo a recuperação desta linha discursiva cansa aos ouvidos, pois se sente que o tempo passou. Poulantzas é genial – contudo é intempestivo – fora do tempo como apenas os grandes pensadores conseguem ser – suas filiações o lançam para fora do tempo, talvez uma nova teoria, talvez novos conceitos, mas Poulantzas opta pelos antigos, não qualquer antigo, mas o mesmo antigo, entretanto, radicalmente novo. Intempestivo porque insiste em tratar dos velhos grandes temas da política, sob a veste do argumento de que não há sobre o que falar, senão dos grandes temas da política. O Estado é um deles, relações de exploração, outro, ideologia, mais um, e sim, o velho glossário do pensamento marxista volta às nossas cordas vocais, contudo ainda que possamos indicar indiscutíveis homofonias, trata-se aqui de um novo conceito. Novos papéis para velhos temas da política. Vejamos um trecho que bem indica a idéia que enunciamos, depois comentemos:
“... o Estado apresenta uma ossatura material própria que não pode de maneira alguma ser reduzida à simples dominação política. O aparelho de Estado, essa coisa de especial e por conseqüência temível, não se esgota no poder do Estado. Mas a dominação política está ela própria inscrita na materialidade institucional do Estado. Se o Estado não é integralmente produzido pelas classes dominantes, não o é também por elas monopolizado: o poder do Estado (o da burguesia no caso do Estado capitalista) está inscrito nesta materialidade. Nem todas as ações do Estado se reduzem à dominação política, mas nem por isso são constitutivamente menos marcadas”.
O que nos leva a crer que o Estado, o poder e a relação de dominação exercida pela classe dominante através do Estado continuam sob uma mesma estrutura conceitual, contudo o teórico deve atentar que o Estado possui formação heterogênea, de modo que para além da dominação, existe o exercício da dominação e a recepção da dominação pelos dominados – tal dialética é importante, inclusive, para a delimitação dos elementos constitutivos do Estado. A dominação política não é a única dominação exercida pelo Estado, talvez pudéssemos dizer que ser dominado pela política não é a única forma de exercício de poder ou de limitação de liberdade através do Estado, de modo que dominar pela política, igualmente, constitui um modo de ser dominado pela política. Não é possível abandonar o processo de dominação impunemente. Poulantzas indica percebê-lo, mas não sem uma boa dose de moralidade ao estilo marxista. Com efeito, devemos perceber que utilizamos o vocábulo moralidade e não o preconceituoso moralismo. Em certa acepção nossa afirmativa é bastante redundante, mas o faz de maneira necessária, pois entendemos que não existe atitude teórica que não envolva uma percepção moral. Não importando a natureza filosófica do argumento, se falamos sobre relações intersubjetivas, falamos, também, de moralidade. Ainda que não haja uma teoria moral marxista, devemos apontar que existem elementos que nos levam a perceber uma estrutura discursiva própria ao modo de elaborar teorias do marxismo, como por exemplo, a descrição da exploração como sendo negativa (não que discordemos desse fato). Contudo o marxismo permite um paradoxo interessante: é possível utilizar as categorias filosóficas do marxismo, possuindo como pano de fundo, outra teoria moral que não o marxismo, isso é possível porque o marxismo realiza exaustiva descrição do capitalismo, mas podemos ler o capitalismo sem tê-lo como essencialmente pernicioso para a natureza humana. Poulantzas assim não faz: seu comprometimento com o marxismo envolve adesão aos princípios morais do marxismo. Mais uma vez insiste na boa intempestividade.
A intempestividade adotada por Poulantzas talvez não seja a melhor, mas é ortodoxamente marxista, gostaríamos de indicar que a apropriação do marxismo, enquanto teoria econômica que compreende uma parcela do capitalismo, em outras bases morais, talvez evidenciasse um interessante (re) nascimento de antigos instrumentos conceituais. Assim, queremos salientar que ainda resta em Poulantzas apropriação excessivamente moral (no sentido da moral marxista) para avaliar os termos econômicos do capitalismo.
Poulantzas percebe que muitos indicam que o marxismo possui excelentes categorias de análise do capitalismo, mas que não possui uma acertada teoria geral do Estado. Contudo, não podemos deixar de afirmar que a teoria econômica marxista, apesar de irrefutável em muitos pontos, possui conteúdo cruelmente histórico, de modo que, se atentarmos bem, inclusive os axiomas mais assertivos são relativizados em função das novas instituições políticas. Inclusive os elementos mais reconhecidos do marxismo deverão sofrer se desejarem a permanência enquanto conceito, modificações estruturais. No que diz respeito a uma teoria geral do Estado é absolutamente conhecido que o marxismo não dispõe de uma, Poulantzas observa que o marxismo não possui uma teoria geral do Estado porque não pode possuir uma teoria geral das formações do Estado. Seria uma contradição para Poulantzas à existência de uma teoria geral do Estado em um procedimento teórico que se pretende revelador das relações materiais envolvidas nos processos de produção e os modos de influência desses na luta de classes. Vejamos como defende sua posição:
“... não existe teoria geral do Estado, pois não poderia haver. Nesse ponto, é preciso ser rígido com as críticas, de boa ou de má fé, que recriminam as pretensas carências do marxismo ao nível de uma teoria geral do político e do poder. Um dos méritos do marxismo é justamente o de ter afastado, neste caso como em outros, os grandes devaneios metafísicos da filosofia política, as vagas e nebulosas teorizações gerais e abstratas que pretendem revelar os grandes segredos da História, do Político, do Estado e do Poder".
O argumento resta bastante claro, contudo ao nos confrontarmos com algumas teses apresentadas pelo autor somos constrangidos com algumas aparentes contradições. Parece evidente que uma teoria que se pretende opositora dos arroubos metafísicos da tradição possuirá desconforto com a enunciação da possibilidade de uma teoria geral, mas quando enunciamos que a separação entre teoria e prática é um ponto forte de nossa capacidade formuladora, parece que cometemos o mesmo engano que objetivávamos evitar. Não se trata de nenhum paradoxo performativo, mas de uma contradição, dessa vez podemos dizer que não tão somente aparente, porque, independentemente do que motive a assertiva, a separação entre teoria e prática é o que possibilita a estrutura lógica dos argumentos hipotéticos. Para Poulantzas, parte da conveniência do marxismo advém do fato de que esse não é hipotético, mas profundamente responsivo aos problemas da “história das lutas de classe dentro do capitalismo”.
Não cabe aqui discutir o grau de responsabilidade do marxismo frente aos desastres do stalinismo e dos regimes do leste europeu, primeiro porque não é clara a possibilidade de se aplicar um conceito como o de responsabilidade a fenômenos que não sejam perfeitamente previsíveis, como a ação de homens em determinadas condições, segundo porque ainda que pudéssemos aplicar a noção de responsabilidade em situações não tão previsíveis, não estaria certo que coletividades pudessem ser imputadas e terceiro porque jamais poderíamos imputar o conceito de responsabilidade ao filósofo, pois sua influência pouco ou nada depende de sua atividade (ainda para casos muitos extremos como o de um Sartre).
Em pequeno axioma pensamos ser correto dizer que a influência dos filósofos, ou a influência das idéias na vida prática é sempre muito menor do que pretende o filósofo e sempre muito maior do que pretende o historiador. Para a intempestividade: muito menor do que esperamos e muito maior do que imaginamos. Contudo, os malabarismos que Poulantzas utiliza para absolver o marxismo são completamente absurdos, assim como suas analogias. É uma defesa verdadeiramente ruim de o marxismo afirmar que a ligação do marxismo ao regime de Stalin e as desventuras do leste é comparável à ligação entre Rousseau e os totalitarismos ou entre Jesus e as ditaduras ibéricas. Todas as comparações são absurdas, ainda que a ligação entre Stalin e as idéias de Marx – principalmente se pensarmos no Manifesto do Partido Comunista – seja muito mais factual do que entre Jesus e Franco.
Se “[s]empre existe uma distância estrutural entre teoria e a prática, entre teoria e o real” essa distância não pode ser invocada para quebrar as possíveis responsabilizações e não ser invocada para justificar a ausência de uma teoria geral do Estado. O argumento da impossibilidade de uma teoria geral é bastante coerente, contudo essa linha narrativa estabelece vinculação necessária entre teoria e prática. Não podemos jogar fora o fato de que o marxismo é uma estrutura teórica eminentemente prática. Com intensidade tal que a separação entre teoria e práxis chega a não fazer sentido. De modo que em largas linhas concordamos com as conclusões alcançadas por Poulantzas, mas não concordamos com a escada que usou para subir nesse telhado.
Estado e ideologia ou crenças?
A implicância de Poulantzas com aqueles que se vale de Marx de modo não ortodoxo é bastante significativa, cremos que poderia dialogar com mais generosidade se levasse um pouco mais a sério os seus aparentes oponentes enquanto intérpretes do marxismo. Os principais “detratores” do “verdadeiro” marxismo para Poulantzas são Foucault e Deleuze. Dialogar a partir de Foucault e Deleuze contra Poulantzas seria uma covardia, porque contamos com uma visão geral da obra dos autores malditos, com a qual Poulantzas não podia contar. Assim, ao invés de refutar Poulantzas através de um místico holismo, buscaremos explicitar sua possível precipitação no julgamento desses autores. Para então examinarmos o papel da ideologia em seu pensamento e confrontarmos o conceito de ideologia com a noção de crença.
Todos sabemos que o Estado é constitutivo das relações econômicas, tanto na sua ação, quanto na sua abstenção, da mesma forma sabemos que as formas contemporâneas do capitalismo agem contra a singularidade, contra a individualidade, contra a inventividade e a favor da individualização, da generalização e da serialização. Poulantzas tanto concorda com essas sentenças que as confirma. Vejamos um trecho de Poulantzas para depois comentarmos no contexto deste parágrafo:
“Não existem classes sociais anteriores à sua contestação, isto é, às suas lutas. As classes sociais não se colocam “em si” nas relações de produção para entrar na luta (classes “para si”) somente depois ou noutro lugar. Situar o Estado em sua ligação com as relações de produção é delinear os contornos primeiros de sua presença na luta de classes”.
O que nos leva a perceber que a noção de classe enquanto conceito que pode ser utilizado como agente de reação contra um determinado estado de coisas demanda, antes de tudo, reação a serialização, à generalização e à individualização. Uma classe é um posto de reação a certas disposições do capitalismo, tão somente quando consegue alguma ação criativa sobre si. Alguma inventividade sobre sua condição. Alguma singularidade sobre sua função. A exposição das relações de produção serve quando aponta para o “marco zero” de onde uma classe deve ser inventada. O capitalismo possui classes ainda que não haja singularidades nessas, mas conta com classes inertes, corpos passivos com relação aos quais pode imprimir as suas marcas. A classe, no sentido marxista, rejeita as marcas externas para fundar suas próprias. Daí a noção de que o marxismo não possui dentro nem fora, mas somente relações exteriores, pois não admite que de fora seja interiorizada uma classe, para a qual regras são ditadas e papéis são estabelecidos. Silenciosamente Poulantzas se aproxima de Foucault e Deleuze. O ato criativo de composição de uma classe é traduzido enquanto condição de possibilidade para a ação política na instituição ou contra a instituição.
Poulantzas é bastante cético quanto à aceitação de uma linguagem tradicionalmente marxista, sem que essa sofra apropriações teóricas mais próximas aos problemas que deseja resolver, contudo, quando critica Deleuze parece sofrer de um preconceito terminológico, não o agrada a pluralidade terminológica, bastar dizer que Poulantzas, inclusive pelo fato de ser marxista, é um cético ruim. A perturbação, ou a taraché para os céticos, do marxismo o leva a reinventar parcelas interessantes da teoria marxista, mas não o levam reinventar a própria teoria, o pensar dentro das arestas conceituais do marxismo faz mal a Poulantzas, de modo que não aceita o padrão dos velhos marxistas, mas não consegue estar confortável em novos mundos.
Um confronto entre dois mundos pode ser encontrado no embate entre as noções de ideologia e de crença. A noção de ideologia é bastante identificada com a história mesma do marxismo, de modo que dependendo do conceito de ideologia, podemos afirmar diante de qual marxismo estamos. O marxismo de Poulantzas também conta com o conceito de ideologia, mas ao invés de estar centrado sobre os tradicionais pólos: encobrimento da realidade e dominação; encontra-se também articulado com a possibilidade dos regimes ideológicos não serem absolutamente homogêneos. A concessão, feita por Poulantzas, a uma releitura do conceito de ideologia passa pela admissão de vias transversas de influência, como quem diz: - Assim como o Estado emana ideologia para a contaminação das classes, também as classes emanam ideologia para a formação do Estado, ou seja, uma via dupla. A crença por outro lado é bastante autônoma da figura do Estado. Pelo conceito de crença entendemos a relação última de causalidade da natureza humana com o espaço e com o tempo, de modo que pelo regime da experiência é dado aos homens esperar alguma coisa do mundo da vida onde estão inseridos. A crença não possui o “conteúdo paranóico” da ideologia (entendemos por conteúdo paranóico o fato de que à ideologia, como encobridora da realidade, sempre é dado corresponder, epistemologicamente, atitude mínima de desvelamento dos processos encobridores), pois entende pela naturalidade das explicações conceituais da realidade. De modo que não existe regime explicativo imposto, mas regimes explicativos aceitados, não segundo algum voluntarismo, mas no processo social mesmo. Assim, o Estado, segundo o conceito de crença, não utiliza a crença para dominar, mas é ele mesmo uma crença. Crença essa que possui regimes próprios para a composição do poder. Por certo que a noção de crença está muito mais próxima de Foucault (episteme) e de Deleuze (aparelhos de captura) do que de Poulantzas. Contudo quando diz que a ideologia “... produz discurso segmentar e fragmentado segundo as diretrizes da estratégia do poder ”, aproxima-se enormemente de uma filosofia das crenças. A noção de estratégia difusa do poder não pode ser interpretada como encobridora, mas como reveladora de um estado de coisas. A política utiliza crenças para a convalidação do exercício do poder. Cabe, portanto, indagar o que é o poder?
Poulantzas entende o poder como a ação de dominação do Estado com relação a uma classe, de modo que, ainda que o Estado sofra muitas influências para a composição de sua ideologia, predominantemente evidencia o exercício da reprodução dos poderes de classe nas relações de produção.
Para Poulantzas, e somente essa idéia é suficiente para colocá-lo no panteão dos grandes pensadores, o poder é exercido sob a forma de violência sobre o corpo. Meios efetivos de manipulação e devoração de corpos; mecanismos de mutilação, de normalização e de ordenação de corpos; agências capazes de fazer morrer, de fazer viver e de deixar morrer são os elementos pelos quais o poder é exercido. Poder possui estreita relação com a força, mas essa possui dimensões das mais variadas, como o terror e o trauma, de maneira que a mera persuasão física é somente uma das peças desse intrincado fenômeno. O exercício do poder sobre o corpo extrapola o regime da biologia e adentra no terreno das instituições, de uma tal forma que Poulantzas chega a dizer que um corpo não é uma unidade personalíssima, mas uma instituição política.
Por certo que Poulantzas localiza o exercício do poder no Estado. As ideologias são modos da ação sobre o corpo. O silogismo final é composto com a união entre Estado e ideologia agindo sobre o corpo, instituição política de um intrincado jogo de aparelhos de dominação. Muitas críticas podem ser feitas a essa precipitada união de idéias empreendida por Poulantzas, mas se deslocarmos o poder do Estado para a imanência da política, enquanto regime de composição e interação de crenças; teremos uma imagem completamente nova da política, uma imagem que não é mais inteiramente marxista, mas que parte de Marx. Para isso temos que nos comprometer com as teses, de Foucault e Deleuze, segundo as quais o poder nunca é centralizado, pois o poder não possui um dentro e um fora, não havendo aqueles que usam o poder e aqueles que sofrem a ação do poder, mas apenas o poder.
A produção de cenários onde a figura do poder é relevante deve ser compreendida sempre dehors. Ao mesmo tempo em que o poder é mobilizado no Estado, a possibilidade do poder já foi permitida em outro momento da vida social. A sociedade exerce poder quando permite o poder, e mesmo em sua subjugação. Paradoxalmente (porque contraria a essência de sua tese) Poulantzas recorda que o poder exercido por Hitler não seria possível sem o poder exercido pelos alemães, assim como o anti-semitismo de Hitler não realizou sozinho o extermínio; do ponto de vista da moralidade existem vítimas e algozes, mas no ponto de vista do poder existe um contínuo exercício de influências. Não existem desinteressados passivos no jogo do poder. A própria servidão é uma ação de passividade. Não é a toa que o Discurso sobre a servidão voluntária de La Boétie seja invocado constantemente pela tradição em filosofia política inaugurada por Pierre Clastres (a afinidade de Deleuze com Clastres é conhecida).
Poulantzas é melhor marxista do que Foucault e Deleuze. Mas o marxismo de Poulantzas não é a única teoria marxista sobre o poder, como não é o único regime teórico sobre as ideologias, da mesma forma como a ideologia não é o único conceito que nos ajuda a compreender o poder. Uma leitura sistemática e complementar entre Poulantzas, Foucault e Deleuze tem muito mais a acrescentar aos debates sobre o marxismo do que parece crer Poulantzas. As análises de Foucault e Deleuze sobre o marxismo acabam por subvertê-lo um pouco, no sentido de que vai contra o “verdadeiro marxismo”, mas ao incluir categorias diminutas como: a definição do poder como sendo composto por microvilosidades de influências, torna sem sentido a pergunta: - Está fora ou dentro do Estado? Não porque responde como Hegel que tudo está dentro do Estado, mas porque afirma que o Estado, como todos os poderes, está diminutamente localizado, de modo que está sempre “fora” das categorias.
Referência:
Poulantzas, Nicos. O Estado, o poder, o socialismo. Tradução Rita Lima. Rio de Janeiro: Edições Graal, 1981.
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*Jeorge Luiz Cardozo é professor mestre e assessor técnico da secretaria municipal da educação de Salvador.